Ivy Menon

Não sei bem porque ou que dia decidi que não mais brigaria com a dor. Qualquer dor. Mas foi decisão. Igual a quando na quarta série primária resolvi que minha letra seria tombada para a esquerda e não para a direita. E treinei até me acostumar. Aparentemente, de um dia para o outro deixei de gritar quando me machucava. Se tropeçava e arrancava a ponta do dedão não dava um pio. Sequer um ai, caso batesse a cabeça na porta do guarda-comida ao me levantar. Nem um gemido com os croques e beliscões da mãe irritada com o excesso de filhos e faltas.

Nunca mais choraria por ter sido magoada, humilhada, destratada, roubada, injustiçada e as demais maldades a que os pobres são submetidos. Sem lamentos. Palavrões, jamais. Vingança, sequer no pensamento admitiria. Adolescente, dei um cala-boca nas aflições. Cortei as asas do meu direito de expressar desgosto por feridas abertas e fechadas.

No entanto, prantear sofrimento dos outros podia. Autêntica carpideira nos funerais de estranhos e conhecidos. Também me permitia chorar de rir. As pequenas alegrias inusitadas e a emoção causada por notícias boas me surpreendiam e eu me inundava de lágrimas. O amor me derretia.

Pouco tempo antes, decidira não mais matar animais. Exceto os que se tornariam alimento. Durante a capina no sol escaldante era comum pisar em formigueiro. Eu exercitava a paciência e tirava com cuidado, uma a uma, as malditas (ops) lava-pés, e as colocava no chão a fim de que seguissem seu caminho ou reconstruíssem seus túneis. Quase arrancava o couro de tanto coçar. Jogava terra em cima. Continuava a lida. Taturana me queimava? Me esquecia do bichinho e curava a queimadura com a própria urina. Abelhas? Vespas? Se fosse possível, salvava.

Décadas de bondade, misericórdia e paciência. Até que caí em mim. Acho que foi a terapia que acabou com minha onipotência. Não me recordo o que veio primeiro, se a enxurrada de palavrões contra todos os tipos de machucaduras, dores, lástimas, unhas arrancadas, arranhões em espinhos, cortes de faca de cozinha, queimaduras fritando bolinhos de chuva… ou se foi a falta de compaixão para com os bichos e insetos praguejentos. Voltei a ser “demasiadamente humana”. Exatamente o oposto do que eu me decidira, na adolescência.

Coço a cabeça com os dedos do meio. Porra, feladaégua, praga do dianho! Merda! Bosta! Teu cú. Maldito seja até a alma do tataravô do desinfeliz! Esqueço meu compromisso com a desconstrução do machismo e mando logo um feladaputa. Os demais palavrões deixo por conta da imaginação de cada um.

A coisa ficou pior quando me nasceram os netos. Todos passaram a conhecer de cor e salteado o gesto que faço para mostrar como resolvo os problemas de formigas e outros insetos que picam meus amores. Esfrego as unhas dos polegares uma contra a outra e sentencio: “vovó esmaga!”. Complemento: “melhor não chegar perto deles, malditos! Cacete do caraleo!.”

Que libertação!

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

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