Em 2011, quando estagiava no agora extinto jornal Folha do Estado, lembro que cheguei um dia na redação, e meu então chefe, o editor do caderno de Cultura, Cláudio de Oliveira havia deixado um pequeno papel em minha mesa. Escrito em caneta preta, um nome e um telefone. O nome era Marília. Sem o chefe para me orientar, perguntei ao meu pai quem poderia ser. E então ele me disse: Ah deve ser Marília Figueiredo Leite, professora de Letras da Universidade Federal (UFMT), mestre em Semiótica.

Marília em sua posse na AML
Marília em sua posse na AML

Liguei para Marília e fui até a sua casa para entrevistá-la. Conversamos durante uma hora aproximadamente, e Marília me inundou de informações, signos, histórias. Até hoje ela me diz que aquela foi a melhor entrevista que já fizeram dela. Era uma entrevista pingue-pongue e coloquei suas palavras exatas no papel do jornal.

Nos reencontramos nos caminhos da vida algumas vezes depois disso, como na Academia Mato-grossense de Letras (AML), da qual se tornou membro e agora é presidente licenciada. Mas, tinha vontade de escrever sobre seu pai e os rumos da minha vida acabaram por adiar esta outra entrevista até os dias de hoje. Sabia que o pai de Marília era Gervásio Leite. Um dos grandes nomes de Mato Grosso, que atuou fortemente na área da educação, cultura e jurídica.

Gervásio com as filhas Marília e Moema
Gervásio com as filhas Marília e Moema

Recebi Marília em minha casa na última semana para falarmos sobre papai, como ela o chama. Sempre de bom humor e com um sorriso largo no rosto, tomamos um café forte e comemos um pão francês. A ocasião para a entrevista é o centenário de Gervásio Leite, que nasceu em 19 de junho de 1916, e Marília preparou uma festa digna do pai, com tudo o que “ele mais gostava”: pintura ao vivo, música e seus textos. No teatro da mesma UFMT que ele ajudou a fundar, nesta terça (21) às 20h.

Gervásio Leite
Gervásio Leite

Suas memórias sobre o pai revelam todo o carinho pela sua história, seu trabalho que não é tão conhecido. A isto Marília atribui à simplicidade de sua origem, ‘papai não tinha sobrenome como de Rubens de Mendonça. Rubens era filho de Estevão de Mendonça, e papai era filho de quem?’. Seu amigo Rubens, que juntos lançaram a revista modernista Pindorama. Foram publicadas duas edições. Marília explica que a elite cuiabana não admitia sacadas revolucionárias, e ambos estavam dispostos a desconstruir este aparato do academicismo.

Gervásio e a mulher Nilce
Gervásio e a mulher Nilce

Antes de partilhar comigo tantas lembranças, ela diz pensativa que o pai faleceu na mesma idade em que está agora. Aos 74 anos incompletos. “Ele era um visionário. Foi estudar no Rio de Janeiro e voltou para Cuiabá, para sua terra, como um Dom Quixote lutando contra e à favor do vento”.

“Ele era só. Era um sonhador”.

E nos caminhos da vida, a história se repete. Marília é presidente da mesma Academia de Letras da qual o pai também foi. Ela me conta que houve uma relutância para que ocupasse a cadeira de nº 2, e chegaram a sugerir que ficasse com a próxima, que pertenceu à Maria de Arruda Müller. Sem nem saber porque, bateu o pé e ficou com o número que se inscreveu.

13406703_515936151935349_1337980716571168727_nFoi quando chegou em casa que achou na mesa de seu escritório, um anuário da Academia, e viu que o pai ocupava a mesma cadeira que escolheu. “Eu fiz a inscrição sem saber que a cadeira nº 2 era dele, e então quando vi o anuário falei ‘não vou desistir'”.

Sua origem humilde não o impediu de se tornar um dos homens mais poderosos de Mato Grosso, foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB-MT), foi desembargador e presidente do Tribunal de Justiça (TJMT). Jornalista e um dos fundadores da Associação Mato-grossense de Imprensa, que também presidiu. Lançou as bases do estatuto da criança e do adolescente. Fez uma obra histórica sobre a educação em Mato Grosso. Criou o movimento Graça Aranha. Modernista.

Ele gostava de dançar, ela se lembra. E foi quem a ensinou a beber. Fez com que Marília misturasse todo os tipos de bebidas, para no dia seguinte dizer que não era assim que se bebia. E a ensinou a beber mostrando como não beber.

Esse tal Gervásio devia ser uma figura, penso eu quando Marília me fala que ele era conhecido pela irreverência, pelo bom humor, um boêmio, que gostava de beber, dançar e pintar palavras em poemas. Afinal, se ela é uma pessoa com uma disposição de viver e alegria no olhar, com este sorriso a receber todos com uma palavra carinhosa, imagina como devia ser Gervásio. Marília diz o que pensa, e sempre foi assim, assegura minha mãe Anna Marimon que a presenteia com um desenho seu.

Desenho este que Marília esqueceu e que nesta terça-feira levarei para presenteá-la novamente. E que os 100 anos de Gervásio sejam comemorados com toda a alegria e grandeza que a filha deseja e que o pai merece.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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