Gosto muito de um livro do Gianni Rodari, “Gramática da Fantasia”, de onde tiro algumas lições para a escrita e contação de histórias. A primeira delas é intitulada “Errando as histórias”:

– Era uma vez uma menina que se chamava Chapeuzinho Amarelo.

– Não, Vermelho!

– Ah, sim, Vermelho. Então o seu pai a chama e…

– Não, não foi o seu pai, foi a sua mãe.

-Certo. Ela a chama e diz: vá à casa da tia Rosa levar-lhe…

– Ela disse para ir à casa da vovó, não da tia!

(RODARI, 1982, p. 55).

Gianni Rodari, autor

Rodari comenta da irritação que as crianças sentem quando se muda a história que sabem de cor. Em “As Fábulas ao contrário”, a “variação do jogo de errar consiste em uma reviravolta do tema fabulístico. Chapeuzinho Vermelho é má e o lobo é bom…” (RODARI, 1982, p. 60). Mas a que mais gosto é a “Salada de Fábulas”. Quando meus filhos eram pequenos eu praticava com eles: misturar personagens de várias histórias em uma única. Pode ser divertido, ou não. Vai depender de você.

Chapeuzinho Vermelho encontra o Pequeno Polegar e seus irmãos no bosque: suas aventuras se misturam, escolhendo uma nova estrada que, de um modo ou de outro, será a diagonal das duas forças que agem sobre o mesmo ponto, como no paralelogramo que, com grande surpresa, vi nascer sobre uma lousa, em 1930, das mãos do professor Ferrari de Laverno. (RODARI, 1982, p. 65).

Neide Silva tem escrito há algum tempo para crianças. Recentemente concluiu sua mais nova aventura: “Elvis e Lola”, a segunda em que, além de escrever, também ilustra. A primeira foi “Kaike”, a história de um pintinho que queria ser pato. Nascida de inspirações do filho Norberto, que também gosta de fábulas ao contrário, misturadas e invertidas, as histórias têm embalado a muitas crianças de Cuiabá e da baixada e, vez ou outra, surgem em rincões mais distantes, graças ao trabalho dos Correios, agora que as viagens se tornaram escassas.

Em “Elvis e Lola” a busca pelo reino encantado é base para uma história de amor. Entre coelhos não é como os humanos. Eles são capazes de ver cenouras coloridas, se respeitam e cada um come o alimento da cor preferida. Kaike é míudo e gostaria de ser dono do terreiro, como o galo. Seu mundo era das coisas simples. O traço delicado de Neide Silva expõe a simpatia das personagens aos olhares do leitor. As imperfeições se combinam com as imperfeições dos seres e daí surge a felicidade.

Mas das mãos de Sebastião Silva é que brotaram as primeiras vidas a ilustrar os seres de palavras. Iribi Sabiá tem andado longe. Foi parar em escolas de São Paulo. Embora não soubesse cantar, sabia cantarolar, e trazia dos fundos do porão sua sabedoria e introversão. Preso na gaiola, saiu do porão direto para o azul do céu, cheio de aves a decifrar as notas de seus belos cantos. Iribi aprendeu com a ajuda de Francisco a decifrar a partitura, a ler nos olhos de cada um a nota de sua preferência.

Do alto daquele céu enxergava a todos os outros. Foi quando viu seu amigo, Cigamiguinho. Ele é amigo das árvores, dos rios, de todos os campos mais verdes. Amigo do sol e da lua, dos trovões que não lhe fazem mal. Mas não das indústrias que sopram fumaça por todos os lados. Não das queimadas que ardem os olhos das estrelas e enegrecem as nuvens branquinhas de algodão.

Ele é amigo das árvores, de todas elas, inclusive da maior de todas, simpática e sabichona, mas que foi cortada pelo machado do homem branco. Cortada pelo tempo de sujeira que se misturava a sua seiva escorrida. Cortada no coração bondoso que abençoava os peixes e os humanos com sua sombra, seus frutos. Só era inimiga da fumaça dos carros e do lixo, filhote daquela poluição danada. Por ordem de Dona Árvore se criaram as cooperativas de catadores de lixo.

– Não foi ordem dela. Foi Cigamiguinho quem criou.

Esqueci que o Gianni Rodari estava ouvindo esta história. Sim, Cigamiguinho, amigo da sapinha bailarina, foi ele quem criou. Mas ele não sabia rodopiar, nem cantar, apenas cantarolava. Pra lá e pra cá. Até que a fada chegou com sua varinha e disse:

– Tangerina, Teresina e Glicerina: BUM!!!!

Cigamiguinho nunca precisou de sapatilhas pra rodopiar. Nem Sapinha, ou Iribi. Nas histórias de Neide Silva, a poesia torna o reino das palavras repleto de encantamento. Não é poesia enquanto gênero, mas linguagem.

Os efeitos do contato do homem com o belo e o feio tendem a ser os mesmos: o belo produz uma sensação de prazer; o feio, de terror. Na visão relativista da criança, no entanto, esse absolutismo se esvai e o feio pode se tornar atraente, instigante. (RÊGO, 2011, p. 106).

Minha avó materna sempre disse que “quem ama o feio, bonito lhe parece”. Em “Kaique”, a vaidade aparece de maneira natural em um salão de beleza.

As galinhas fazendo as unhas, com trejeitos de donzelas, estavam se embelezando. Todas tão belas. Algumas chocadas e curiosas com o que haviam visto. Dona Perua, que estava arrumando os cílios, logo deu um conselho:

– Parem de ficar com tantos anseios, que feio, escutando os assuntos alheios!

(SILVA, 2019, p. 12).

Com a autoestima em dia, Sabina aprendeu a ouvir a voz do coração e “rodopiava, dançando lindamente! Um dia, depois de rodopiar muito, ela se cansou e se sentou na grama. Foi então que, ao olhar para os pés, viu que estava sem as sapatilhas. E entendeu que já não precisa delas para rodopiar”. (SILVA, 2020, p. 19).

Com Cigamiguinho foi diferente. Virou ambientalista, e graças a ele, naquele mundaréu distante onde vive, “A conservação da natureza trouxe bem-estar e alegria para todos”. (SILVA, 2020a, p. 19).

– E o Iribi Sabiá, por onde ele anda?

– O Iribi é muito esperto, depois que voltou de São Paulo já foi visto até na Bahia. E diz que vai pra Juína passar uns dias na Biblioteca de lá. Agora ele é “Livre, seguro e feliz, o Sabiá se juntou ao seu bando”. (SILVA, 2020b, p. 18). E todos vivem felizes em suas histórias, é só abrir a página que o “ leitor fica, então, muito próximo da coisa sobre a qual se fala; a palavra é o próprio animal. (…) Assim é eliminada a distância entre o “eu” e o objeto. A palavra se torna mágica, pois começa a ser o objeto em si, singularizado”. (RÊGO, 2011, p. 107).

E o final da história parece que se torna simplesmente um até logo, como se os personagens dissessem para o leitor, seu amiguinho:

– Eu vou ali e já volto, tá bem?

 

Referências

RÊGO, Zíla Letícia Goulart Pereira. O passaporte para a poesia N ‘A Arca de Noé, de Vinicius de Moraes. Signo. Santa Cruz do Sul, v. 36 n.60, p. 103-115, jan.-jun., 2011.

RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. 11. Ed. São Paulo: Summus,1982.

SILVA, Neide. Kaike. Cuiabá: Tanta Tinta, 2019.

___________. Sabina, a sapinha bailarina. Cuiabá: Tanta Tinta, 2020.

___________. Cigamiguinho. Cuiabá: Tanta Tinta, 2020 a.

___________. Iribi Sabiá. Cuiabá: Tanta Tinta, 2020 b.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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