Luiz Renato de Souza Pinto*

 

Estou no Rio Grande do Sul. Morei em Porto Alegre em 1996, por seis meses, cidade para a qual despertei definitivamente para o romance histórico. Acabo de ler O Farol no Pampa, de Letícia Wierzchowski. Mas quero falar de mulheres. De outras mulheres que extraí de um mergulho em algumas de suas obras. O primeiro de seus livros que devorei foi Neptuno (Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2012). Obra enigmática, fluida, nem por isso leve, impermeável ao senso crítico ou profundidade psicológica de algumas personagens. Foi lá que conheci June, nome que muito me parecia familiar, posto que nos anos de 1980 o contato com escritores de sucesso se fez presente em minha vida.

farolDeparo-me com uma narração que me traz essa certeza: “Talvez eu devesse ler um pouco de Henry Miller antes de voltar à carga, mas o fato é que não há tempo” (p.135). Reflexões de caráter metalinguístico entrecruzam o tempo todo o universo ficcional. “Pois bem, estou aqui, docilmente. Enfileirando palavras há semanas. Como quem ergue um muro de tijolos imaginários” (p. 149). Afinal de contas, “a vida é assim mesmo, não existem rascunhos. Talvez por isso eu tenha clara preferência pela ficção” (p. 165).

primeiro-e-ultimoDepois veio seu mais recente livro, O primeiro e o último verão (São Paulo: Globo Livros, 2017). A história se passa no litoral do Rio Grande do Sul, quando famílias compartilham a temporada que envolve muitas aventuras. Jovens apaixonados e seus primeiros amores e decepções amorosas envolvem o leitor. Mas também os pais são descortinados em seus conflitos. “Quando eles estavam juntos, porém, a alegria do meu pai se transformava em silêncio, e a tristeza da minha mãe se transformava em mágoa” (p. 24). De lá me surgem garotas enigmáticas se espaçando pela narrativa. Vim para o Balneário do Pinhal atrás dessas personagens, pois me parecem muito vivas.

os-aparadosEm OS APARADOS (Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2009), o cenário é outro. Aparados da Serra descortina novo drama existencial. Débora está grávida aos 17 anos e tem uma relação complicada com o avô, uma vez que perdeu a mãe e o pai encontra-se sumido no mundo. O processo da escrita também regurgita por entre as linhas “Li todos os autores do Sul enquanto construía a casa. Para sentir o clima, voltar à infância” (p. 37). O retrocesso da estrutura social nos é antecipado de maneira veemente pela narrativa: “… daqui a quinze anos, o filho de Débora vai ser um jovem numa sociedade provavelmente constituída de células independentes, como na Idade Média. Pequenas povoações cercadas por muros. E esse terreno, essa ponta de montanha, vai ser o feudo do seu bisneto” (p. 55).

Como em muitos autores, há marcas que recortam o conjunto da obra de qualquer autor. Com Letícia não é diferente. “O Rio Grande do Sul tem sete mulheres para cada homem, eu li isso em algum lugar”. (…) A barriga é um farol. Seus olhos fitos nesse globo de carne, sangue e vísceras, e ele não sabe explicar a sua certeza (p. 67). Descendente de poloneses, em OS GETKA (Rio de Janeiro: Record, 2010) há um debruçar-se sobre histórias de família, de guerra, de imigração.

Quando olho as fotos gastas que guardei daquele tempo, quase posso rir do velho chalé de madeira. Os anos passaram e vi coisas e lugares, mas o menino que ainda hoje havia em mim me inspira o devido respeito – aquele talvez tenha sido o meu verdadeiro lar, senão o único. É com ela que sonho até hoje, a casa azul sobre pilotis, tímida e meio desconjuntada (p. 18-9).

downloadA obra dessa portalegrense traz a imagem canônica da passagem do tempo, da existência dos ventos que caracteriza essa cartografia sentimental. Foi assim com Érico Veríssimo, com Tabajara Ruas. “A casa estava quase encoberta pelo tenaz esforço do vento, que passara os últimos dez meses empurrando areia para o severo pátio retangular onde cresciam dois pinheiros e um teimoso arbusto meio ressequido pelo abandono” (p. 19). Gosto das metáforas de Wierzchowski. Embebo-me de sua força imaginativa e impetuosidade na construção de sentido. “As ondas de seu sono sem remorso não lambiam a areia de minha praia deserta” (p. 68). Da força represada de suas águas surgem perfis femininos grandiosos para se contar histórias fulminantes.

DE UM GRANDE AMOR E DE UMA PERDIÇÃO MAIOR AINDA (Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2007) materializa a figura de Bibico Nunes, um bom vivant, malandro que se envolve com várias mulheres ao mesmo tempo. Cecília, Maristela e Ana Dora, por exemplo. A primeira, viúva de um deputado, mulher fogosa que

iria mandar tudo isso às favas, tudinho mesmo, iria mandar longe a cidade de Rio Partido inteirinha se preciso fosse, mas daria continuidade aos seus amores com Bibico Nunes dentro dos planos que tinha traçado. E seria muito feliz, ah, como seria… E azar de quem pensasse o contrário.

– Mas casar não vou – disse Cecília para si mesma com voz firme. – Casar eu não caso. De agora em diante nenhum homem põe cabresto em mim (p. 45).

casa-das-seteEstou de caso com as personagens dessa vigorosa escritora que parece sacar da guaiaca manuscritos verossímeis que fervilham na ponta dos dedos. Em casa, aguardam-me para leitura, O pintor que escrevia, Sal e A Casa das Sete Mulheres – o que a tornou conhecida de brasileiros e outros povos. Mas desta viagem levo outros. Cristal Polonês, O Anjo e o resto de nós, Prata do Tempo e Uma ponte para Terebin. Vim para um congresso sobre Decolonialidade na UNISSINOS, em São Leopoldo, nos dias 25 e 26/04. Até lá vou matando saudades dos tempos em que morei aqui, no saudoso ano de 1996.

Não estou só. Nem soube da existência do chalé azul, embora o sofá de onde leio Navegue a Lágrima seja da cor do céu; três das quatro paredes do quarto refletem a cor da letra e de algumas páginas da referida obra. Ela, intrínseca. Ouço vozes. Penso ser o próprio Lucas que esteja ao meu lado; uma espécie de escritor que pintava com a paleta de cores. Mas ele está morto (ou estaria volitando ao meu redor?). Muitas famílias não voltaram mais ao Pinhal depois daquele último verão.

*Luiz Renato de Souza Pinto é escritor, professor, poeta e ator, 
 não necessariamente nessa ordem. 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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