As resenhas sobre Enterre seus mortos, de Ana Paula Maia me fazem lembrar do Almodóvar. Especificamente de Volver, de 2006, por conta da cena em que um corpo humano já inerte repousa dentro de um freezer. Mas razões para enfrentarmos metáforas, por mais bizarras que nos pareçam em um primeiro momento, existem às dúzias, por aí.

12“da próxima vez enterre seus mortos” (p. 109).

Já enterrei mãe, avó materna e mais recentemente meu pai. Há certa hombridade em permanecer nos rituais, aquele tempo de refletir sobre os excessos, as ausências. O mesmo senti na passagem de alguns amigos. Mas este sou eu, melhor ou pior que nenhum outro humano que conheço (penso!).

11“Edgar Wilson nunca visitou os túmulos de seus mortos e nem pretende fazê-lo (p. 102)”.

Conheço pessoas que não gostam de ir a enterros, frequentar cemitérios, sequer aparecer em velórios de amigos, parentes, ou mesmo celebridades. Não cabe aqui qualquer tipo de censura, mas, desculpem-me pelo clichê, a morte faz parte da vida.

10 – “Ninguém nasce só e não deveria morrer só” (p. 83).

É uma verdade. Mas existe o viver só. Acredito ser necessário estar bem quando se está só. As ausências devem se resolver por conta de interações que ocorrem no seio familiar, no ambiente de trabalho, no lazer e na opção de ter outras companhias nas mais diversas opções de se colocar em movimento. Não preciso estar com alguém para me sentir bem; mas gosto de estar com outras pessoas, principalmente estando bem, pois é quando tenho o melhor de mim para oferecer.

09 – “Assim como não teme o pôr do sol, Edgar Wilson entende que não deve temer a morte. Ambos ocorrem involuntariamente num fluxo contínuo” (p. 71).

Há certa similitude entre o final do dia e o fim da vida. O eclipsar-se dos olhos de alguém. A metáfora é bastante viva na literatura universal e transborda nos clássicos. Manuel Bandeira traz isso vivo na, na Estrela da Manhã; como Bilac em Tarde. A noite é sinônimo de muitos mimetismos.

08 – “Não existe sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixá-lo ao relento, às aves carniceiras, à vista alheia” (p. 59).

A morte talvez seja das coisas mais dignas que existam no reino dos vivos. É quando se está ali sem pedir nada. Parece que tudo o que se faz é por remorso, culpa, satisfação, ou agradecimento. Ninguém está impune diante de um caixão habitado.

07“Edgar deixa a caneca de café sobre a mesa e confere de perto o par de olhos. Aproxima-os da pelagem do animal e grunhe em concordância” (p. 56).

O grunhido de Edgar o iguala ao animal morto na estrada. São inúmeros que diariamente se chocam com carros de passeio, ônibus e caminhões pesados. A indústria do frete, o desleixo público e o descuido com animais silvestres geram assassinatos de antas, capivaras, tatus, raposinhas, tamanduás e muitos outros espécimes de nossa fauna.

06 “Estamos falidos. Não damos conta nem dos mortos” (p. 52).

As reflexões que o livro de Ana Paula nos proporciona são de uma monta espetacular. Não se trata de um livro qualquer, de uma ficção que nos retire da realidade pura e simples; por outro lado, também não nos afasta muito do mundo em que vivemos, sem decalques simplórios, divagações filosóficas gratuitas.

05“Mas para ele aquela mulher valia tanto quanto um abutre e tinha o direito de ser recolhida como o  resto dos animais mortos” (p. 48).

O bicho homem valendo o mesmo que seu semelhante – sim, abutres são nossos semelhantes, com a diferença de que comemos a carne da galinha, do porco, da vaca, do abutre não, do carcará; por que comem carniça? Mas comemos camarão e siri que se alimentam bem sabemos do que. O bicho homem vale tanto quanto um abutre e tem o direito de ser recolhido, e não deixado em exposição ao ar livre. Pessoas são executadas ao longo das vinte e quatro horas do dia e alimentando os noticiários policiais de rádios, jornais e televisões, alguns que se exibem em nosso horário de almoço ou jantar.

04 “O livre comércio religioso, apoiado em ideias de prosperidade não apenas no céu, mas também na vida terrena, aliado aos três pilares que o sustentam – culpa, medo e ganância -, construiu um novo sistema em que não somente as penitências resultam em gratidão dos céus, mas também o antigo modelo “eu pago, eu recebo” (p. 35).

Pulverização da fé. Estratificação do credo religioso. Ostentação. Renúncias fiscais. Débito, crédito, e tudo mais. Enquanto animais são dizimados, vida de gado que me lembra a cachorrinha Baleia, do Graciliano. Vidas secas, corpos secos, aridez de um discurso hipócrita que nada muda nas urnas. Sequer na urna funerária, aquela a que se denomina de a última viagem.

03“Ainda pensa na menina, na cruz, no bezerro e em toda a miséria que o cerca. Pensa nos animais mortos, tanto nos atropelados quanto nos sacrificados. Sangue por sangue. Toda cruz é feita de carne e sangue” (p. 33).

“Carne da minha carne” gritava o Curupira no filme de Joaquim Pedro de Andrade. E corria atrás de Macunaíma, sem a proteção de Mário de Andrade.  O corpo pendurado em uma árvore no meio da floresta. Descoberto pelos removedores ao seguir o movimento dos abutres. O bezerro cedido aos policiais rodoviários para se carnear com a família; miséria e cruz que norteiam a democracia brasileira. Sangue por sangue; carne e sangue na forma de metáforas ou não.

02 “ três vezes ao dia a pedreira de calcário é dinamitada: às nove da manhã, ao meio-dia e às três da tarde. Desde que o sino da igreja parou por falta de quem o toque, as horas canônicas são contadas pelas explosões na pedreira, cujo pó de calcário causa contaminação, afetando as vias respiratórias” (p. 25-6).

Em regimes monárquicos a Igreja estava dentro do Estado; com o advento da República, não mais. O sino sem quem exerça sua função cede lugar à dinamite para marcar o tempo. O tempo da destruição de relações mais puras, a imposição de um cânone que mata por asfixia, por atropelamento, pela imposição de um modelo servil, pela intolerância de gênero, de cor, de muito mais do que se pode verbalizar. Pedreira, pó, o ar que se respira.

01 “Para ele, estar na presença de um cadáver o deixava um passo atrás da morte, como se ela não pudesse alcançá-lo, pois assim como o fluxo da vida segue sempre em frente, também o da morte avança” (p. 13).

E assim a obra de Ana Paula segue, é vida que segue. A luz que se aproxima traz a possibilidade de mudança. Depois de mortos, dependeremos do agradecimento de alguém. Não quero ficar como Brás Cubas, remoendo depois de morto com a ideia de que eram poucos em seu enterro, devido à chuva que descia; mas era tão fina que “peneirava”, como dizia por intermédio do bruxo do Cosme Velho. Enterre seus mortos, pois a memória deles talvez seja tudo o que reste quando precisar lembrar de quem te fez bem por alguns (se não muitos) momentos em sua longa (ou nem tão…) vida.

REFERÊNCIA

MAIA, Ana Paula. Enterre seus mortos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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