A dor é líquida

e se escorre pelos vãos dos dedos

indo formar o oceano das dores marítimas

mais íntimas

por onde navegam os homens tristes.    (Antônio Sodré)

O grande depósito de bugigangas caiu no meu colo na noite de dez de abril de 2020. Foi na semana em que perdi minha mãe. Ainda não tinha noção da onda de emoções que sua partida me provocaria. Mal sabia eu o tamanho do abismo que se abriria sob meus pés ao me reportar aos territórios da infância de onde brotam memórias sutis que fazem nossa imaginação flutuar entre o real e a fantasia.

As páginas que se abriam me desvendaram parte de um universo de bugigangas que de alguma forma me pertenciam. Bugigangas poéticas, pedaços de uma longa vida marcada pelas dores e risos que nos cabem.

O poema empório, emblemático, me fez voltar os olhos para outro livro que repousava sobre a mesa, já gasto pelo constante folhear, o empório literário de Antônio Sodré. Versos diversos. E lá estava eu, de repente, a tagarelar animadamente sobre a poesia que atravessou minha vida sob a influência de minha mãe, professora de língua portuguesa e literatura. Lembranças balançavam na minha mente torta e entre uma taça e outra de vinho, recordações fluíam espontaneamente.

Me encontrei mais uma vez sonhando entre as prateleiras abarrotadas de bugigangas do empório doméstico de Santa Maria, minha cidade natal. Seguindo os passos de dona Zita, catava o que podia entre os saldos dos balaios de promoção, enquanto ela cuidadosamente calculava o que podia comprar para o Natal de suas seis crianças, com o que restava do seu salário de professora estadual.

Mas,

sempre tem um “mas”,

a realidade se impôs no presente instante desse “empório de sonhos enfeixados”.  Imediatamente me vi de volta daquele breve passeio pela infância, debruçada sobre as páginas do livro de poemas de Divanize Carboniere. Não conseguia chorar enquanto me dedicava “a recolha de cacos de sonhos que serão partilhados por loucos e sãos até que se pereça o tempo.”

Temos um tempo que se acaba, quando nos deparamos com a face da morte e não há mais nada a dizer diante do inexorável. Olhei a foto da minha mãe deitada sob o véu da eternidade.

Um grande mistério permanente.

“Paro única viva

Observo o inerte

Momento da morte

Que ainda não tive.”

Com esse verso que peguei emprestado de Divanize para definir o indefinível encerro aqui esse breve relato.

Minha mãe me deu a voz da poesia. E o uni verso me acrescentou o resto:

as lágrimas.

 

 

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