Malas e malas com R$51 milhões em dinheiro vivo oriundos da corrupção, exposições de arte e peças de teatro censuradas, a Amazônia sem proteção e rifada como moeda de troca, a liminar de um juiz categoriza o amor como doença ao permitir tratamento para homossexualidade, um general defende abertamente uma intervenção militar caso o judiciário não solucione a crise política, um presidente (bi)denunciado compra apoio parlamentar com liberação de emendas. Essas são as últimas notícias do Brasil. O retrocesso caminha a passos largos.

O ano de 2017 começou com centenas de pessoas decapitadas, esquartejadas e queimadas em um cenário de guerra dentro dos presídios brasileiros. A enxurrada de tragédias noticiadas aponta para um horizonte mais sombrio do que o temeroso presente e avança em uma velocidade assustadora.

Com a polarização ideológica no país somada a uma onda fundamentalista que acomete o mundo, o EL PAÍS e a Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) realizaram em conjunto o segundo ciclo de debates com o tema “Corrupção: Avanços e Afetos”, na segunda-feira (18). Foram convidados o filósofo e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, autor do livro A Boa Política e o advogado e professor da FAAP Márcio Pestana, autor do livro Lei Anticorrupção. A mediação foi realizada pela jornalista Carla Jiménez, editora-chefe do EL PAÍS Brasil.

Dados do Ministério Público Federal (MPF) sobre a Operação Lava Jato foram repassados para contextualizar o tema corrupção. Com início em 2014, foram 165 condenações contra 102 pessoas em primeira instância. No Superior Tribunal de Justiça (STJ) foram 450 pessoas investigadas em 178 inquéritos, com 159 acordos de colaboração premiada homologados. Estima-se que foram pagos entre R$6 a R$10 bilhões em propina.

Com a cobertura midiática, a impunidade histórica, a vontade de punir da sociedade brasileira, as distorções de um sistema que priva a população em ter acesso à educação, saúde, cultura, o questionamento é: a sociedade alimenta-se dessas informações para reflexão ou apenas para proliferar o ódio e/ou senso comum que mantêm estas estruturas de poder?

Provocativamente, o debate tem a palavra afeto, explicou a editora-chefe do EL PAÍS, devido ao ódio da política presente na sociedade, afinal, na última eleição, os números de abstenções, votos nulos e brancos “venceram” em 22 capitais. O desinteresse reflete a descrença da população.

“É um assunto que bate no fígado de todo mundo, quando vemos mala com R$51 milhões. Mas de que maneira podemos transformar e fazer do copo meio vazio meio cheio? Tem uma frase no livro do professor Renato que diz: ‘conhecendo melhor a nossa sociedade seremos mais éticos’. Quando vemos essas notícias de corrupção no governo de Mato Grosso, do Rio, traições, etc, vão torná-los mais éticos? É para lá que estamos caminhando?”, questionou Jiménez.

Sobre a máxima de que todas as pessoas querem se corromper e que a única forma de coibir isso seria um sistema de controle forte, Janine ressaltou que esta afirmativa é uma renúncia ao poder da educação.

“Eu não compartilho dessa opinião, acho que as pessoas honestas são mais numerosas. Temos que tornar a corrupção algo tão repulsivo quanto o preconceito étnico, de gênero, a homofobia. Agora quanto à frase ‘se conhecermos o Brasil seremos mais éticos’, a educação significa duas coisas: transmitir o conhecimento mais rigoroso, mais atual, e a escola deve transmitir certos valores que são basicamente os dos direitos humanos, da declaração da Organização das Nações Unidas (ONU). Se conhecemos o Brasil precisamos ver a diversidade do país, respeitar essa diversidade e coibir preconceitos. É muito importante o papel da imprensa e da educação em fazer com que as pessoas percebam que a pobreza não é fruto de vagabundagem ou desonestidade, mas de condições sociais, e esse é um ponto que faz um divisor de águas muito grande na percepção das coisas”.

Carla destacou que os três anos de notícias sobre a Operação Lava Jato criaram um terreno fértil para a polarização política que confundiu alguns conceitos, como identificar direitos humanos como bandeira da esquerda. “Quando falamos de direitos humanos do ponto de vista legal em um país, como escreveu a nossa colunista Eliane Brum, que dá mais ênfase ao crime contra o patrimônio do que contra a vida, entendo que também incluímos os direitos humanos no estado de direito, certo?”, perguntou ao professor Márcio Pestana.

Malas de dinheiro do ex-ministro e homem de confiança do presidente Temer, Geddel Vieira Lima

Pestana observou que prefere afastar as rotulações de esquerda e direita, alto e baixo, mas que temos um ordenamento jurídico em constante mutação. “O que eu percebo é que o Brasil precisa repaginar essa perplexidade que enfrenta, esse complexo de vira-lata, que entende que somos um país de segunda categoria. O fenômeno da corrupção é mundial e está presente em todo o países”.

Além disso, o professor apontou que o Brasil vive um momento de transição de uma modelagem que não estávamos acostumados a debater, com uma transparência nunca alcançada antes. “O papel da imprensa é importante principalmente pela dialética que se forma, muitos cidadãos brasileiros não tem conhecimento das minúcias do ordenamento jurídico e a imprensa possui esse papel educativo. Este é um momento rico pois estamos refundando o estado brasileiro e somos protagonistas dessa refundação. Já tivemos várias rotulações de estados, mas temos que criar um novo estado a partir da doença enfrentada. Vejo como um momento interessante para todos nós comprometidos com o Brasil de tomar parte ativamente na mudança do país”.

Antes de deixar o cargo de procurador-geral da República, Rodrigo Janot encaminhou segunda denúncia contra o presidente Michel Temer (PMDB) e afirmou que uma organização criminosa ocupou o lugar de outra organização criminosa. Jiménez refletiu sobre o vocabulário utilizado e ponderou que nunca antes a política foi associada com organização criminosa.

Pestana explica que as expressões organização criminosa e formação de quadrilha coincidem com certos tipos penais e sublinhou a importância do devido processo legal. “O devido processo legal pressupõe o direito de defesa no sentido mais amplo possível, de que uma afirmativa para se sustentar e gerar eventual condenação deve se submeter ao devido processo legal. O que percebo é que houve posições radicais no encaminhamento de certas condutas e afirmativas”.

Para Carla Jiménez, seguir o devido processo legal pode estar claro para uma parcela da população, como a que acompanhou o debate nesta segunda, mas que, para as pessoas que acompanham as notícias no Jornal Nacional, entende-se que é necessário prender mesmo que apenas sob suspeita.

“Voltando a história do ódio, o brasileiro não compreende que há um juiz, provas, e vem um imediatismo que reverbera, por exemplo, em uma candidatura de uma pessoa que fala sobre ser mais severo com bandido. Tem um rito jurídico necessário enquanto que no meio político é conveniente bombardear redes sociais ou as famosas fake news, então, como filtrar, fazer essa percepção chegar”, ponderou Jiménez.

Janine lembrou do impeachment do Collor, que foi julgado como uma quadrilha, uma organização criminosa, 25 anos atrás e só não houve condenação no STF, pois as provas foram apreendidas sem autorização judicial. “Temos dois pontos pacíficos aqui que temos que elaborar dentro deles: a repulsa da corrupção e o direito total de defesa”.

O professor pontuou que a dimensão política disso tudo é muito complicada. “Desde o período colonial a crítica que se faz a todo governo é sempre a mesma, a corrupção. Gregório de Mattos na Bahia em 1600 e quase nada, ataca o governador por que é corrupto. Fanfarrão Minésio, um personagem da literatura mineira do século 18 é um ladrão. Então a história toda do Brasil, a grande crítica na maior parte do tempo é a corrupção e isso deixa a discussão política pobre, por que ao invés de dizer eu quero um governo liberal de direita, ou de esquerda com preocupações sociais, todos com respeito a lei, etc. Não! Ficamos neste ataque superficial”, disse Janine.

Na avaliação de Janine, a combustão se torna maior com a crise econômica produzida ao final do primeiro mandato da presidente Dilma. “Afasta uma presidente que não possui nenhuma indicação de maior solidez de corrupção, em seguida entra um grupo cujo um dos líderes já está condenado, que é o Eduardo Cunha, então tem uma desmoralização no âmbito político gigantesca”.

A desmoralização dos poderes, executivo, legislativo e judiciário, faz com que todos sofram os mesmos ataques. “Tem um ministro que toma uma decisão no STF e se você concorda, você aplaude. No outro dia, se você não concorda, não gosta, você xinga, ou seja, a legitimidade só é respeitada quando mesmo que eu discorde eu reconheça a legitimidade da decisão. Hoje não temos mais esse espaço de legitimidade, existe uma deterioração do tecido político enorme, se você é de esquerda ou de direita, você blinda os seus ouvidos. Então tem essa dificuldade gigantesca de questionar as coisas. As pessoas preferem responder priorizando o lado que elas gostam e isso deixou o campo de discussão pública, a Ágora em Atenas, esse espaço de discussão, vazio. Não temos mais esse espaço onde você pode dizer que os dois lados estão errados, mas os dois tem coisas boas, vamos construir em cima disso”, afirmou Janine.

Uma das preocupações de Janine é com o funcionamento das instituições. “Todas abrem a porta de manhã e fecham a noite, mas o respeito pelas instituições está muito fraco”.

Já Pestana faz um giro sobre a história da corrupção no mundo e deu como exemplo a Alemanha, que na década de 80 autorizava a propina com dedução no Imposto de Renda. O movimento de combate à corrupção começa a se irradiar em todo o mundo ao final da década de 90.

“Mas porque fazer esse passeio? Qual o motivo? Quero demonstrar que a participação popular foi importantíssima para edição dessa lei que estamos aqui falando. Desde 1996, o Brasil subscreveu em diversas convenções internacionais de combate à corrupção, só que a lei do Brasil só foi entrar em 2013. E isso se deu, para mim é muito claro, por que o estado não desejava ter um ambiente anticorrupção, que responsabilizasse pessoas jurídicas. O clamor popular pela tarifa em 2013, que depois ficou difuso, foi a resposta que a toque ligeiro produziu essa lei, tanto que teve um curso rápido. Em abril foi para o Congresso e em agosto estava aprovada. Foi uma resposta à situação vivida pelo executivo e legislativo. Esse passeio que eu dou pela história e pelas década é para mostrar que o Poder não queria uma lei de combate à corrupção, tanto que o decreto presidencial dessa lei foi publicado dois anos depois”.

Na opinião de Pestana, não havia uma disposição de se combater com a devida intensidade o fenômeno da corrupção e a população com direito a voto deve examinar a qualidade do seu voto e utilizar-se das redes sociais para legitimar os questionamentos.

Uma pergunta da plateia faz com que Carla Jiménez pondere sobre se a justiça no Brasil é partidária, e ainda se a Operação Lava Jato fez da sociedade brasileira mais fundamentalista, de querer a justiça feita mais do que entender como ela é aplicada.

Janine avaliou as diferenças dos casos de Dilma e Temer. A presidente foi afastada pelo Congresso pelo crime de responsabilidade, que não é um crime comum e possui um conceito amplo, enquanto que a acusação ao Temer não, é feita com base em colaborações premiadas. “Não temos um caso avançado contra o atual governo, e as acusações serão processadas no STF. Não são acusações de crime de responsabilidade que é processado perante o Senado. Primeiro precisa do aval da Câmara para processar o atual presidente, tanto em um processo de crime comum que vai à Justiça, quanto de crime de responsabilidade que vai ao Senado”.

O professor de filosofia continua: “Por que a Constituição exigiu 2/3 da Câmara para garantir o afastamento? Porque para afastar um presidente para julgamento é um terremoto político, tem que ter apoio político grande. É injusto? É, porque podemos ter um criminoso no poder se essa pessoa conseguir 1/3 da Casa. Isso pra mim é propriamente politica, a Dilma caiu não foi por tal operação, mas por que perdeu o apoio político da sociedade brasileira por várias razões, mas essa seria uma discussão que iria por outra via por que não é discussão de corrupção e sim de perda de apoio”.

Se as tratativas diferentes à Dilma e ao Temer não são sinais de partidarismo na justiça, por outro lado, com a questão do fundamentalismo cresce a ideia de soluções radicais. “Temos uma sociedade com muita impunidade e extremamente punitiva. Muitas pessoas não são sequer processadas por crimes de porte, então esse país tem uma vontade de punir que é gigantesca, mesmo que não puna de fato”, avaliou Janine.

Para Janine, o único lado bom é que estamos sendo desafiados a mexer com isso, e que é preciso ir até o fim no combate da corrupção para não abrir espaço para um day after como do Berlusconi na Itália, que passou por tudo isso para um corrupto assumir o poder.

Foto Jeff Pachoud/AFP

No entanto, é preciso pensar o Brasil para além da pauta da corrupção, defende Janine. “A dimensão da corrupção é muito maior do que imaginávamos, são bilhões e bilhões de reais, e a simples eliminação da corrupção não resolve a crise. O Brasil vai continuar a apostar nas commodities, agora em queda? Ou na reindustrialização? Vai utilizar pesquisa científica, que este governo está liquidando, e que é o que mais agrega valor? O futuro do mundo hoje, é sobretudo, você ter pesquisa científica, tecnologia, inovação, prestação de serviços. Essas questões são cruciais. Vamos educar o país para que a nossa mão de obra seja mais qualificada? Vamos promover igualdade que é a base do liberalismo? Essas são questões que a Lava Jato não resolve, nem toca nelas”.

Jiménez cita entrevista do ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT) que em determinado momento disse que não se pode trazer as distorções do andar de baixo para o andar de cima. “O sistema hoje prende pobres e deixa livre os ricos, 60% dos presos são provisórios. E se o sistema é falho, existe uma chance de ser corrigido agora?”.

Pestana respondeu que não há menor dúvida em dizer que o sistema penal, cível e administrativo são falhos. “O que devemos recordar é que, a lei é feita no legislativo. Há uma tendência de atribuir as responsabilidades ao poder executivo e ao judiciário, mas é o legislativo que produz as leis. Por exemplo, uma distorção é esse acordo de delação premiada, virou uma festa, e uma festa inclusive com apostas, em que o réu aposta que se tiver uma condenação morna, suave, ele não delata, se tiver condenação alta, mesmo sem culpa, faço delação. Não é assim que funciona, que se consegue o instituto de delação. As multas também não podem ser celebradas da maneira que julgar oportuno e conveniente. Não pode dar acordo de leniência a esse “grupo da proteína” (JBS) inclusive com indexadores muito mais atraentes. E isso é uma área cinza, porque reúne nas pessoas de alguns poucos, poderes para transacionar bilhões de reais em desfavor do povo brasileiro. É o momento que temos que aproveitar essas tragédias que enfrentamos para buscar aprimoramento legislativo com repercussões concretas no poder judiciário”.

Janine defende que a solução não pode ser simplista, maniqueísta, de achar que um lado está certo e outro errado, pois a abstenção e o desinteresse possuem consequências trágicas.

“A política não são só eleições, existem mobilizações, atuações, abaixo assinado, protesto na rua, essa reação de não votar é desmoralizadora. Quando as pessoas perdem a esperança na vida política você para de ter renovação e o Congresso já possui um número grande de dinastias. Não podemos pensar a política só como voto. O que decepciona é o voto, mas tem espaço para atuar além do voto. Não me basta votar, mas vou pra rua, vou participar, me juntar com outras pessoas, tomar iniciativa, juntar amigos, escrever, isso resulta. A grande diferença que temos na matéria política é que a gente descrê dos efeitos da ação política e não percebemos como manifestações podem trazer resultados, a constância de uma manifestação”.

Esse cenário poderia ser revertido, como exemplificou Janine através de maior participação das mulheres que representam mais de 50% dos eleitores mas ocupam apenas 10% das vagas no Câmara. O mesmo caso das pessoas de cor escura, os pardos, negros, afrodescendentes e indígenas. “Se tiver essa proporção no Congresso, teríamos outras leis aprovadas”.

Uma das preocupações expressas com essa onda fundamentalista e polarizada é com parte da população que nas redes sociais clama por uma “intervenção” militar. Jiménez fez um apelo em sua fala: “Não há liberdade em uma ditadura”. Pestana afirmou que devemos diuturnamente combater estas ideias.

É preciso entender que existe um problema estrutural no país, que existe um abismo entre as pessoas, por questões históricas e sociais. Para refletirmos ainda mais sobre o tema, indico o texto “Gays e crianças como moeda eleitoral” da Eliane Brum. Prolifera no Brasil a intolerância. Mas nós, que entendemos estes processos, temos o dever de levantar a bandeira do debate, da discussão, da possibilidade. Não podemos queimar as pontes de comunicação que nos conectam. Precisamos ouvir e entender o que e por que dizem o que dizem. Com a resistência através da arte, da cultura, da educação, devemos criar um terreno para construir um amanhã possível. Para não acordarmos em 2018 com a sensação de que estamos em 1964.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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