“Linha de Sombra” é um livro de contos, de Lúcia Bettencourt, publicado inicialmente no ano de 2008, pela Editora Record. O livro me agrada enquanto projeto, não tem prefácio, apenas textos de orelha e contracapa, assinados respectivamente por Marcelo Moutinho e Alberto Mussa. Moutinho destaca o ovo de Clarice como referência estrutural do conjunto de narrativas, Mussa, por sua vez põe em relevo o fato de que a autora “consegue unir o rigor formal que o gênero exige a uma sensibilidade delicada, a uma emoção pulsante, com personagens que ficam mesmo numa linha de sombra, numa zona indefinida entre o Bem e o Mal”.

Dividido em duas partes, os contos vão se enlaçando, quer pela temática, vocábulos que os costuram, quer pela quantidade de luz direta ou indireta que os narradores jogam sobre alguns aspectos estruturais de cada narrativa. Eu, por minha vez, prefiro destacar as intertextualidades do conto “A Insônia”, com seu febril arcabouço machadiano: “Nada havia de mais escuro que uma noite em que todos dormem em paz, menos uma única pessoa, solitária, infeliz, insatisfeita” (BETTENCOURT, 2008, p. 17). As referências a “Uns braços” e “Missa do Galo” interagem com o bruxo do Cosme Velho.

As delícias de “Circo Erótico” com a dona de sebo que entrevista os clientes antes de deixá-los penetrar pelos corredores com suas estantes, as relações limítrofes em torno do “noivado” – típicas de uma cidade excludente, como estão se tornando as grandes metrópoles da contemporaneidade. A vendedora de sonhos que moravam nos livros sabia que “Machado de Assis era um homem de braços e decotes, e ele precisava de mais do que isso: perfumes, sons de gemidos, o vislumbre de uma perna bem torneada” (idem, p. 28).

Ceia de Natal lembra muito o Peru, de Mário de Andrade, mas em “Depoimento” é que saltam as personagens que se transformam em pessoas, convivas, diluídas nesta comédia da vida privada que habita em nós.

Descobri que meus contos faziam sucesso entre as universitárias, que encontravam neles características feministas. Fui timidamente feliz. E depois fui esquecida. O feminismo saiu de moda, meus contos deixaram de agradar.

Hoje vivo de uma pequena mesada que Helô e Fátima me pagam para não relembrar mais nada. e me divirto processando meu ex-marido, mandando-o para a cadeia sempre que atrasa a pensão (idem, p. 48).

A “carta” me parece uma espécie de ovo em concha (de retalhos). Isso tudo no que se chama de Sol. Mas da Sombra é que jorra o pacto. Uma mão que lava a outra com o próprio sangue que empunha o machado (não de Assis). Em “Ikebana”, o substantivo (sombra) desdobra-se em assombravam (verbo) e assombrados (adjetivo), pulsando feito bolhas de sabão que atravessam pelo homônimo e outros dois contos.

“Medeia” / Macunaíma, esta relação se me é apresentada pelo fragmento em que, “já na cidade grande, fizeram amor entre as cédulas espalhadas na cama, esfregando-se no dinheiro com volúpia, ele sentindo-se insuperavelmente heroico, ela sentindo-se irrecuperavelmente corrompida” (idem, p. 83-4).  “Lázaro” ligando a “Linha de sombra” com “Faxina” e “Hemodiálise”, com suas bolhas de sangue. Gosto de livros de contos que passam a ideia de ligação entre eles, entre elos; o de Lúcia caiu bem para quem se atreve a olhar a obra com outras possibilidades.

Pretendo ler outras vezes este livro, mas escolhi uma sequência diferente para a próxima aventura. Lerei primeiro O “Circo Erótico”, de onde, para mim, saltam a “Insônia”, “Ceia de Natal”, “O Ovo” e “Medeia”; depois o “Depoimento”, após o que viria A predadora, “O Noivado” e “A Carta”; a seguir, “Ikebana”, seguido de “Bolhas de Sabão”. “Lázaro” fecharia a quarta seção, que incluiria os impagáveis “Linha de Sombra”, “Faxina” e “Hemodiálise”.

Não consegui encaixar em nenhum bloco “O Carona”, foge-me a qualquer tentativa de classificação junto aos demais. Talvez por perceber que nele, o leitor, qual o garoto que surge no engarrafamento, empreenda fuga pela porta do veículo (o livro), aberta como a casca do ovo dentro das mãos em concha.

O livro de Lúcia condena o leitor a uma experiência que começa em um ritmo agradável, mas que vai aos poucos se transformando em um incômodo por se saber humano em um mundo cada vez menos. Nenhum espelho pode ser mais cruel do que a literatura.

 

REFERÊNCIA

BETTENCOURT, Lúcia. Linha de sombra. Rio de Janeiro: Record, 2008.

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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