Diante de sua máquina de escrever, uma Olivetti, ela rumina os pensamentos, em silêncio. A fumaça que sobe do cigarro aceso se mistura com a aura de encantamento do pequeno escritório, abarrotado de livros e papeis soltos. A xícara de café ao lado esfria enquanto ela pensa. Nesse momento, está imóvel. Seus músculos não se movem um milímetro e seus olhos fixam o branco da folha. Calmamente, leva o cigarro aos lábios, dá uma, duas, três, baforadas, e volta a repousá-lo no cinzeiro de concha pintado com delicadas cores pelos anos no fundo do oceano.

Assim, sem pensar em nada, levanta da cadeira de madeira estofada com camurça e sai pela porta da frente. A orla, entre o mar e a cidade, provoca esse efeito potente de mente vazia. Caminhou pensativa enquanto se perdia nas paisagens e pessoas, nas cenas do cotidiano, no azul do céu e das águas, nas coisas que os homens constroem para chamar de suas.

O sentimento de amar a tudo e a todas as coisas tomou conta de si. Aquele caminho que percorria todos os dias, de repente, lhe dava uma certeza profunda e serena. Sentiu o amor correr o corpo. E pensou que era deus. Sem qualquer tipo de pretensão, entendeu que era ela, sim, aquela que todos chamam deus.

Absorta no seu devaneio sobre o amor e sobre ser uma entidade divina, percebeu que seus pés iam de encontro a um enorme rato morto. Um rato. Ruivo, gordo, morto. Com um grito mudo de horror, se afastou apressadamente. O corpo tremendo de repulsa. O seu horror a ratos. A respiração apressada. Tentava se recompor e pensava na tremenda ironia daquele momento. Justo quando pensava sobre ser deus e amar a tudo, deus vinha e lhe trazia um enorme rato morto para cruzar o seu caminho.

Pensou em se vingar. Pensou em contar tudo para todos e mostrar a deus que ele não pode pregar peças nas pessoas, que não pode brincar com vidas que não são suas. Andou mais alguns passos e o susto, a revolta, a repulsa, iam se dissipando. E começou a refletir sobre o que deus queria dizer…

Como poderia achar que amava a tudo e a todas as coisas se não podia amar a um rato? Como poderia ser deus se sentia esse horror ao se deparar com um rato?

Entendeu o que deus lhe mostrava. Não era deus. Não podia ser deus. Ainda não havia aprendido a amar a tudo e a todas as coisas. Só poderia ser deus quando pudesse pegar um rato no colo. Só poderia ser deus quando pudesse enfrentar os seus piores medos. Só poderia ser deus quando pudesse amar os seus piores medos. Só assim poderia ser deus.

“Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará.

Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.”

*Conto inspirado na crônica “Perdoando Deus” da escritora brasileira, Clarice Lispector, que completaria 100 anos hoje, 10/12/2020. 

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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