No centro da maior cidade da América Latina, enquanto trabalho, escuto da minha janela as buzinas que anunciam a intensidade do trânsito caótico. Mas é só fechar os olhos para me transportar para outro lugar, um paraíso, um oásis, um refúgio que suspende as horas do relógio e a sensação de urgência que acomete todo o meu corpo, já acostumado a esse ritmo insano de uma megalópole. Assim volto para uma lembrança de um dia de Sol em Chapada dos Guimarães, das borboletas que percorriam as minhas roupas jogadas em frente à cachoeira do Jamacá, do barulho das águas em queda e das sombras serenas das árvores que balançam inquietas farfalhando com o vento.

Foto Mario Friedlander

Essa memória que me habita contempla um momento especial, que o fotógrafo e ativista ambiental, Mario Friedlander, proporcionou ao nos receber em seu recanto mágico. A paisagem em Chapada dos Guimarães convida a expandir a percepção e a consciência. O tempo é outro, não mais marcado pelo imediatismo das redes sociais ou pelo bombardeio de informações das hard news. O compasso é lento. Um portal que se abre na fresta da vida e nos revela mais do que poderíamos encontrar em nossas telas líquidas. Ele nos recebe com um sorriso no rosto e a panela no fogo, um peixe pescado, logo ali, assado na folha de bananeira, uma mandioca rosada que nunca vi igual, mesmo tendo nascido por essas bandas…

Foto Mario Friedlander
Foto Mario Friedlander

Brindamos entre uma cerveja e outra, mas nos enveredamos é pelo caminho das pedras. No bate-papo, ele abre o verbo sem medo. É incontestável ao partilhar sua visão de como o mundo e as pessoas têm mudado. Ele que na década de 80, encampou a luta pela nacionalização do Parque de Chapada dos Guimarães, na conversa em abril, descartava qualquer chance de ameaça ao parque. Era página virada. Eis que uns meses depois, a Assembleia Legislativa, através do deputado Wilson Santos, propôs o absurdo de discutir a estadualização do parque nacional, motivado pelos escusos interesses do agronegócio e dos grandes produtores naquela região. Expandir a soja, o pasto, o algodão. Tudo faz parte dessa ideia de dominação do meio ambiente, das populações tradicionais, dos recursos naturais. Progresso, progresso, progresso, eles insistem em dizer, contaminando o discurso com frases fáceis de efeito. Mas o buraco aqui é bem mais embaixo. Friedlander narra sua trajetória em Mato Grosso, seu registro das comunidades, das mudanças que acompanharam a dita vida moderna, das relações sociais e da atuação política, principalmente, da juventude. Com a ameaça ao meio ambiente e o avanço sobre a floresta, a não demarcação das terras indígenas, a negação do aquecimento global, a política sob o bolsonarismo se entrelaça cada vez mais neste abraço mortal com os ruralistas.

Foto Mario Friedlander

“Eu iniciei isso já tem muitos anos. Eu priorizava documentar comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, paisagens o mais naturais possíveis, pois sabia que isso tudo ia sofrer uma transformação gigantesca. Foi o que aconteceu e continua acontecendo. As paisagens naturais, a maior parte, foi destruída ou degradada, as comunidades tradicionais e quilombolas também sofreram muitas transformações. É normal, toda comunidade, toda cultura vai se modificando com o passar do tempo, mas ultimamente as transformações estão sendo muito rápidas e radicais. E poderia dizer, de certo modo, em alguns casos, negativa, tendem a empobrecer, a simplificar, como um ecossistema que começa a ser ocupado, tende a ser simplificado. Se tinha mil espécies, em dez anos vai ter quinhentas. Esse processo de simplificação é o empobrecimento, quanto mais diversidade biológica, sociocultural, mais forte é uma comunidade, por isso é importante se preocupar com as minorias, grupos marginalizados, e não o senso comum. O senso comum tende a esmagar os outros sensos”.

Foto Mario Friedlander

“Tento dar uma especial atenção por esses outros olhares, me interessei pelas minorias, populações tradicionais, porque tendem a ser esmagadas pelo senso comum, é o que está acontecendo hoje. O início do meu nomadismo por Mato Grosso foi tentando conhecer o que existia de herança dos povos mais antigos, dos mato-grossenses mais originais, dessa cultura que está se esvaindo, principalmente a musicalidade, que é espetacular e pouquíssimo conhecida”.

Foto Mario Friedlander

“É a memória, porque povos pobres, tradicionais, minorias, não tem estado que se preocupa com a imagem deles. O estado trabalha para apagar a imagem deles e não para conservar. Querem destruir a memória dos povos antigos e jamais exaltar. A memória que a sociedade dominante cuida é a do senso comum. A corte que circula em volta do poder está igual como era no período do Império, não mudou nada, veio o rei de Portugal com os puxas sacos, os militares, é a mesma coisa, mudou o regime, não é mais monárquico, é presidencialista. Mas é a mesma coisa, a corte puxando o saco para garantir um lugar próximo ao rei para ganhar vantagem econômica com isso. Essa corte tem as imagens, as palavras, super documentadas, é só ligar a TV. As novelas retratam isso, todos os programas tratam disso, enquanto comunidades tradicionais são massacradas pela mídia para que desapareçam. Eles já são invisíveis, mas querem que sejam incorporados. Minha preocupação é com isso. As músicas que gravei vinte, trinta anos atrás, daqui dez anos se voltar lá ou o meu acervo for disponibilizado para pesquisa, vai impactar os jovens dessas comunidades. Vai trazer à tona as memórias que eles têm. Os povos antigos, principalmente indígenas, mantêm a cultura pela tradição oral, e não escrita como a gente. O vídeo, o audiovisual, tem essa vantagem, conseguimos captar imagem e o som. Pode colocar palavras na boca de quem está falando. É uma pena que não tenha mais pessoas gravando essas comunidades”.

Foto Mario Friedlander

“Estou construindo um acervo há quarenta anos. E estou pensando em revisitar comunidades que fui trinta anos atrás para ver como está hoje. Não é para julgar nada, é simplesmente uma outra visita, um outro olhar. O meu olhar mudou, o mundo mudou e a comunidade mudou, então vou lá documentar esse novo momento. Essas expedições serão a partir de 2020, para fechar esse ciclo, porque no ano 2000 que eu produzi muito material. Investi numa filmadora e viajei muito mesmo, por minha conta, visitei um monte de lugar legal, conheci gente incrível, gravei muita coisa. E agora em 2020 fazem vinte anos, em outros fazem trinta, então estou começando a montar os projetos. São projetos que não são tão simples assim, mas hoje em dia viajar é mais difícil que antigamente, ficamos mais velhos, o mundo está mais careta, muito mais do que era há vinte anos, mais fascista, nosso país ficou um país fascistóide”.

Foto Mario Friedlander

“O apagamento das comunidades, de outra forma de cultura que não está na indústria do entretenimento, esse distanciamento é um dos fatores para não quererem entender. A massa em geral, a sociedade dominante é a maioria silenciosa, eles não falam nada, acham que está bom. Se tiver um canalha no poder, mais canalha do que os que já estão no poder, acham bom, não falam nada, ficam quietos”.

Foto Mario Friedlander

“As minorias se camuflam no ambiente porque são invisíveis e querem se tornar mais invisíveis ainda, por proteção, e existem as incômodas, que protestam, enfrentam. Nos dois casos o que a maioria silenciosa quer é que elas desapareçam. São como um problema a ser resolvido, então nunca existiu, pelo menos que eu saiba, não existe um governo e sociedade nacional que é a favor de minoria. A tendência do governo é sempre trabalhar para abafar, esconder, eliminar, enfraquecer, deteriorar, difamar, as pequenas sociedades. Elas são incômodas, geram discórdia, distúrbio, são posições dissonantes”.

Foto Mario Friedlander
Foto Mario Friedlander

“Existem comunidades e comunidades. Existem lideranças positivas e lideranças negativas, as comunidades que têm lideranças positivas, têm as resistências delas. A coesão interna leva a resistência, salvaguarda, memória, e comunidades que tem lideranças negativas e ficam disputando poder, tendem a fazer alianças espúrias e muitas vezes enfraquece a comunidade. É o objetivo da sociedade, enfraquecer toda forma de organização independente, toda forma de comunidade, não existe acolhimento, são células independentes com lideranças próprias que podem causar problema para as lideranças maiores. As lideranças maiores do país são baseadas na lei, presidente, senado, deputados federais, deputados estaduais, vereadores, são nossas lideranças, são esses caras que dominam, e entram no jogo, são cooptados, através da observação das lideranças comunitárias”.

Foto Mario Friedlander
Foto Mario Friedlander

“Tive uma atuação mais forte, mais ativa no movimento ambiental, ecológico. Quando percebi que Chapada era um lugar sagrado que estava sendo atacado e destruído, me mobilizei com um monte de gente, e conseguimos isso, um movimento enorme, uma década de trabalho. O parque ano que vem completa trinta anos, foram mais de dez anos trabalhando para implantar, até que finalmente o governo assumiu o filho. O parque foi uma criança gerada por um monte de pai e mãe, até o que governo encampou. A administração atual não agrada a todos, não é ideal, mas o parque está até bem, tranquilo, estável, é uma situação melhor que trinta anos atrás. Quem não conheceu não tem ideia do que acontecia aqui. Hoje é o paraíso perto do que era, para mim é uma página virada, já está resolvido, bem ou mal, gestão do parque depende do gestor, é questão de quem está gerindo”.

Foto Mario Friedlander
Foto Mario Friedlander

“Outras questões são sérias e complicadas, ninguém respeita a lei. Criaram o mito que o Brasil tinha a maior legislação ambiental do mundo, é um papo furado, conversa mole, nada a ver com a realidade. A legislação é uma porcaria, a fiscalização é pior ainda. A aplicação da lei não existe. A lei é para os inimigos do poder, sempre foi assim, nunca foi diferente. Sabemos que existem órgãos governamentais que trabalham só para legitimar ações que não seriam legítimas, multas ambientais não são pagas, mas são perdoadas. De tempos em tempos, o governo perdoa dividas dos proprietários do agronegócio, mas não perdoam os presos dos presídios, que roubavam porque precisavam comer, só perdoam os grandes. Agora como mudar isso? Trinta anos atrás tinha militância comprometida, pessoal quebrava o pau mesmo, botava a cara, ninguém tinha medo não, a gente enfrentava. Hoje o perfil da sociedade mudou muito, não vejo essa participação”.

Foto Mario Friedlander
Foto Mario Friedlander

“Vejo que essa massa de juventude se acomodou mesmo, é uma geração meio devagar, então como mudar a realidade de um lugar, ter mais proteção ambiental para Chapada dos Guimarães? Não tem mágica, nem milagre, isso nao existe, o que existe é trabalho, empenho pessoal, doação do seu tempo, articulação com pessoas de verdade e não ficar discutindo em rede social. A articulação pessoal é muio mais poderosa, se enfrentar políticos pessoalmente, um grupo enfrentar, é muto mais eficiente, factível, mudar a realidade. Os caras se sentem incomodados. O mundo não é virtual, é real, existe aí uma redoma do mundo virtual que foi desenvolvida para controle social. Já estava previsto nas ficções há muito tempo e está se materializando, aprimorando, o controle do individuo e dos grupos, para isso existe mídias sociais, ensaios de como controlar pessoas através da internet, computador e celular pessoal de cada um”.

Foto Mario Friedlander
Foto Mario Friedlander

“Eu dediquei a minha vida, toda a minha vida, para a conservação do meio ambiente. Uns anos atrás falei uma frase que parecia forte: “estamos em queda livre”. Não sei o tamanho desse buraco. Essa noção de queda livre, de que não temos controle de mais nada, e estamos caindo e não sabemos até onde e nem o que tem embaixo e quanto tempo ficaremos caindo. Vivemos um momento assim, não temos mais controle”.

“Qual o final de uma queda livre? O chão, o impacto. Eu não tenho ilusão, seja qual for o  tamanho do buraco, a duração da queda, ao final teremos um impacto enorme. Esse impacto vai causar danos irreversíveis, e a partir daí, talvez, comece uma nova história, mas não tenho essa ilusão de que as coisas vão acabar não. Do jeito que está indo o país e como as pessoas estão se agrupando, ficando mais fascistas, agressivas, intolerantes, inflexíveis, não tem como acabar bem. É como uma festa que o povo está bebendo, bebendo, se estranhando, e um é inimigo do outro e daqui a pouco perde o controle. Vamos ver”.

Comentário

  1. Parabéns pelo excelente material! Mariana arrasou no texto e Mário, como sempre, com sua visão peculiar sobre as minorias. Visão de quem conhece e sabe do que está falando. Sem falar nas fotos, que dispensa comentários.

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