Por Antônio Torres Montenegro

Minha experiência revela quão difícil é aprender conhecimentos que desconstroem verdades estabelecidas, interiorizadas na subjetividade. O filósofo Gilles Deleuze nomeia de ‘intercessores’ a relação que estabelecemos com pessoas, com obras de arte, com textos que lemos, com paisagens que vemos quando provocam alguma forma de ruptura com o que tínhamos estabelecido como verdade. Em outras palavras, nas relações nomeadas de ‘intercessores’ somos alvo de um choque, rupturas que nos deslocam do lugar cômodo das verdades conhecidas, provocam dúvidas e buscas de outras respostas.

Foi essa a sensação que vivenciei ao ler a Microfísica do Poder de Michel Foucault, em especial, o trecho que afirma: “O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos…como lugar de escrita…” Senti-me lendo uma língua estrangeira. A imagem do “corpo como lugar de escrita” passou acompanhar-me nas leituras e reflexões.

E os historiadores do período colonial ofereceram as primeiras pistas. Narram que espanhóis e portugueses com auxílio da Igreja Católica proibiam aos africanos suas práticas religiosas, culturais e o uso das línguas nativas. Essa prática de apagamento da língua, da cultura, das tradições religiosas era realizada com a imposição de nova ‘escrita no corpo’. Eram obrigados a aprender a língua estrangeira e adorar o novo Deus. O acontecimento, imposição de uma nova escrita no corpo, era alvo de intensa resistência nas múltiplas táticas dos africanos para barrar o domínio escravocrata.

Entretanto, ao entrevistar Gilda, ex-moradora do bairro do Recife, vivenciei esse percurso teórico e historiográfico. Relata: “Eu já fui burra, eu já fui burra que ninguém botava nada na minha cabeça. Agora, continuação do tempo, aprendi a falar, a me expressar nos cantos. Quando vou pagar o aluguel, lá no escritório do Dr. Romero, tem aquelas moças, as moças mais. Eu fico olhando os modos…o jeito de sentar. Quando eu chego num canto, tenho que falar do jeito daquelas moças. Tem gente já viu eu falando, disse: Ô Dona Maria Gilda a senhora sabe ler. Eu digo: não, não sei ajuntar uma letra, não sei. Pois a senhora fala melhor que muita gente que sabe ler.”

Aprendi com Gilda que “os modos”, “o jeito de sentar e falar” constituem uma mesma prática de escrita no corpo, das pessoas “mais”, alfabetizadas. E ela, ao imitar os modos, as falas, tornou-se reconhecida como alfabetizada. Trampolinagem, mais uma tática de resistência. Indago: quais escritas mantermos, quais apagarmos em nosso próprio corpo?

Antonio Torres Montenegro, é Prof. Titular do Departamento de História da UFPE.  
Publicado no Jornal do Commercio em 06/03/2018.

Comentário

  1. indagando, decifrando escritas luzidias, tortas, opacas, vivenciar as formas de lidar com o outro a forma de oferecer o saber do corpo na perspectiva da vida, indagações deliciosas mano veio…

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