Por Demétrio Panarotto*

 

Todas as canções de que ela gostava não cabiam nas pastas e arquivos do meu coração.
Meu coração era lotado em uma outra estação.
O conflito era evidente mesmo que, em tempos, encoberto pelas churumelas do amor.
E o conflito fazia com que o meu coração tremesse tanto que parecia que ia saltar pra fora do local do sentimento.
Essa tremedeira tumultuava os espaços e as convicções.
Talvez eu possa dizer que as canções da minha estação se resumiam a uma apenas em um loop eterno.
Junto posso dizer que fui eu que demorei pra perceber isso.
E quando nos demoramos diante de algo que nos atrapalha os sentidos, parecemos ainda mais idiotas.
E parecemos ainda mais idiotas do que antes quando nos damos conta que demoramos.
Foi aí que parei pra entender porque motivo escutávamos juntos uma canção do Lupicínio.
Lupicínio parece canção para quando estamos sós e não com alguém.
O cotovelo não dói como devia quando nos repetimos na companhia de alguém.
É possível que a dor, se é que ela existisse, fosse por uma outra lembrança.
E que a canção se repetia na vitrola pois essa outra ainda tumultuava as convicções.
Diante do incerto, despertou em mim a dúvida de se ela gostava de Lupicínio ou se apenas ouvia junto comigo pra me agradar.
E olha que o agrado era volumoso.
Afinal, eu mostrava a mesma canção inúmeras, inúmeras vezes.
Tantas quanto…
Não me dava conta que não sobrava espaço pra ela.
Asfixia.
O corpo preso nas lembranças do outro.
Ela ali no ponto em que a compreensão parecia mediada pela melodia que se repetia.
Todavia era na voz do Arrigo que ela se derretia em pensamentos.
Talvez – inconscientemente -, planejasse a sua vingança.
O certo é que a vida era um cisco sem ela do mesmo modo que era com ela.
Um dia a canção, exausta de tanto ser repetida, pulou da vitrola em um copo d’água.
Quis nos dizer algo que não compreendíamos.
E ao invés de prestarmos atenção naquilo que a canção tinha para nos dizer, concentramos-nos pra ver se ela sabia nadar.
Ficamos impressionados com o fato dela nadar muito melhor do que qualquer previsão otimista.
Outra asfixia.
Quando as expectativas ficam aquém da realidade, parece que o sonho se distancia ainda mais.
São coisas da vida que um dia tremem um pouco pra lá, no outro dia um pouco pra cá.
Tremem.
E quando tremem reposicionam as canções no aparelho.
Agora que ela foi embora a dor substituiu a tremedeira.
E ao invés da canção que tantas vezes escutávamos juntos.
É o silêncio que procura o sentido em um disco arranhado.

 

O conto ‘As canções’, integra o projeto ‘todas as canções de que ela gostava’, disco mais recente do luciano zanatta (professor de música na ufrgs e ex-integrante das bandas Aristóteles de Ananias Jr. e Relógios de Frederico) em que os títulos das canções foram tirados do ares-condicionados (livro de contos que Demétrio lançou no final de 2015, prêmio Elisabeth Anderle, Nave Editora). Confira o disco no linck: archive.org

Luciano Zanatta diz que é músico. vem fazendo barulho, tocando desafinado e enchendo o saco há mais tempo do que seria recomendável – instagram dele.

  • demetrio*Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em literatura, professor universitário, músico e escritor. Publicou, dentre outros, “Mas é isso, um acontecimento” [Editora da Casa, 2008, poemas], “15’39”” [Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas], “Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé” [Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio], “Poema da Maria 3D”[Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book], “Ares-Condicionados” [Nave Editora, 2015, contos] “A de Antônia” [Miríade, 2016, infantil]. Co-diretor dos documentários “Só Tenho Um Norte” [2008] e “Cerveja” Falada [2010]. Com a banda “Repolho” lançou 4 CD’s entre 1997 e 2009, e o compacto em vinil “Sorria, meu bem! (oh Sweet Lucy)” [2004]. Com o projeto “Irmãos Panarotto”, com Roberto Panarotto, lançou os CD’s “2Violão e 1Balde” [2004] e “Chamando Chuva” [2012]. Vive em Florianópolis-SC.

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