O ar está pesado. A atmosfera densa. Quem viveu aqueles tempos diz que a história está se repetindo. Quem estudou, pesquisou e entrou em contato com o que aconteceu entre os anos de 1964 a 1985 no Brasil diz que a história está se repetindo. A história se repetindo. Cíclica. O relógio que volta e estaciona o tempo. O momento em suspenso. Como se fosse possível respirar e reter o ar nos pulmões parando os segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos. As palavras escolhidas para o discurso são as mesmas, com algumas adaptações próprias para o presente. “Ameaça comunista”, “Ditadura comunista”, “O Brasil vai virar a Venezuela”, “Precisamos de ordem e progresso”, “Intervenção militar JÁ”. Entre outras máximas que quem se dispõe a dialogar encontrou nas bocas que justificam o voto no candidato de extrema direita, célebre por suas frases racistas, machistas, homofóbicas e preconceituosas, o preferido na disputa para presidente em 2018, a mais polarizada desde a redemocratização em 1989, Jair Messias Bolsonaro.

Em uma de suas recentes entrevistas a uma rádio, o presidenciável prometeu voltar o país ao que era há 40, 50 anos. Voltar o tempo. Retroceder as voltas do relógio. Quem frequentou qualquer aula de história no ensino médio, viu um filme ou série a respeito, leu algum livro ou reportagem, sabe que neste exato período da história, o Brasil vivia a ditadura civil-militar. É para esse tempo que Bolsonaro quer nos arrastar de volta. É para esse tempo. O tempo da censura, das liberdades violadas, dos corpos e mentes torturados, do sangue derramado, dos porões obscuros que guardam gritos de atrocidade. É para esse tempo que ele quer nos levar. O ar está pesado. A atmosfera densa.

Se voltarmos o relógio mais precisamente há 50 anos, estaremos em 1968. Naquele ano, a ditadura endureceu e o governo baixou o Decreto Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, que instaurava a censura oficial e fechava o Congresso Nacional por tempo indeterminado. A manchete do Jornal do Brasil trazia naquela data: “Govêrno baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado (sic)”. As matérias já demonstravam que não existia mais espaço para reflexão ou crítica. O texto é simplesmente a íntegra do AI-5 e um box pequeno ao lado narrava o clima “calmo” nas ruas, com as pessoas aguardando o governo se pronunciar oficialmente através da Voz do Brasil.

A matéria também cita os ânimos na Vila Militar e acrescenta: “A Polícia Federal tem 400 homens, na Guanabara, ‘prontos para agir’, e também estão totalmente mobilizadas a Polícia Militar, a Polícia Civil e a Guarda Civil”.  Mas, se a censura já havia se instaurado na redação do Jornal do Brasil, pequenos trechos do periódico revelavam a real situação aplacando os censores, como no caso da previsão do tempo que trazia o seguinte: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos.”. É esse texto, narrado por uma voz grave, que acompanha o percurso da exposição.

A capa do jornal estampa a primeira obra de arte visível aos que chegam à exposição “AI-5 50 ANOS: Ainda não terminou de acabar”, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, até 4 de novembro. No dia 13 de dezembro, o AI-5 completa 50 anos, quando o “teatro” de direitos constitucionais é encerrado pelos ditadores.

É sobre isso que o curador Paulo Miyada propõe como reflexão para essa exposição-ensaio no texto de abertura da mostra: “Em 13 de outubro de 1978, uma emenda constitucional revogou o AI-5 e os demais atos institucionais que haviam sequestrado a Constituição Nacional. Mas o AI-5 ainda não terminou de acabar. Traumas demoram para morrer. A redemocratização do país foi feita de modo lento, barganhado, e sem que os pilares que sustentaram o golpe fossem efetivamente rediscutidos. Hoje discute-se, também, o quanto parcelas daquela violência institucional não foram em absoluto suspensas, apenas retornaram a velhos moldes de seletividade social e racial. Pior ainda, crescessem freios a mais perversa das nostalgias: a nostalgia do medo, do ódio e do silêncio. Hoje, enquanto a sociedade brasileira remói a fragilidade de suas instituições fundamentais, a exposição AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de acabar discute os custos da retirada de direitos democráticos no imaginário cultural do país. A pesquisa tem como núcleo a produção de artes visuais do período, com obras, ideias e iniciativas que nasceram tensionando a interdição da própria opinião, que chegou a ser virtualmente criminalizada pelas práticas de censura e repressão. Em alguns casos, as obras agora apresentadas foram proibidas, destruídas ou subsistiram ocultas. Em outros, sua circulação foi seriamente contida e seus modos de expressão passaram por codificações e táticas de resistência”.

“Uma das contribuições que a arte pode oferecer, mesmo durante os arcos mais sombrios da história humana, é sua capacidade de ampliar o campo do que pode ser dito e sentido frente aos limites e interdições da linguagem. Com isso em mente, é possível considerar que esta mostra não é apenas um memorial de silenciamentos e perdas, mas também de reinvenções e resistências, com apelos que se endereçam à sociedade de então e continuam em aberto para os cidadãos de hoje”, completa.

O conteúdo é extenso. Mas dá para ter uma noção da importância da arte enquanto resistência em tempos autoritários, ditatoriais, repressivos e opressores. Os artistas foram responsáveis por articular uma rede de apoio que resultou no manifesto Non a la Biennale de São Paulo, com recusas de artistas de todo o mundo em participarem da 10ª edição da Bienal de São Paulo, que recebia o apoio de instituições governamentais. Ultrapassando fronteiras e conectando todos os que se envolviam com arte para denunciar o regime militar. Naquele momento, a censura estava infiltrada em tudo. Nas páginas dos jornais e revistas, nos canais de TV, nos cinemas, nos teatros, nas rádios, nas artes visuais, nas manifestações artísticas e culturais. Além da autocensura e da paranoia que levava pessoas próximas a denunciarem umas às outras.

O palco, a música, o teatro, as artes visuais, o cinema, tornaram-se instrumentos de combate aos tempos sombrios. A efervescência artística se contrapõe ao endurecimento do regime, à repressão, à tortura, ao medo, à morte. Arte é a vida pulsando. Com a peça Gracias, Señor, do Teatro Oficina de Zé Celso, o teatro assume o papel de guerrilha artística em um dos momentos mais duros da ditadura. A música “Apesar de você” de Chico Buarque e outras que se tornaram símbolos, as fotografias dos protestos e passeatas, os povos indígenas, o apagamento das lideranças negras de resistência, são parte desta memória recuperada na mostra.

Wlademir Dias-Pino e o poema//processo. Já estava me perguntando onde ele estaria, afinal, o movimento que é considerado o mais radical da poesia brasileira, nasce no mesmo ano do AI-5. Os poetas rasgaram livros de poesia brasileira nas escadarias do Teatro Municipal de Cinelândia no Rio de Janeiro e começavam um novo capítulo da arte de vanguarda.

Deposite aqui os votos roubados na ditadura militar

A arte que transcende a realidade e faz sangrar a carne de todos os que não pisaram nos escuros porões da ditadura. É uma aula de história, um banho frio de realidade. É um despertar de uma memória que é coletiva. Ao final, os ossos doem, os sentimentos congelam. O tempo retorna, a história se repete. A diferença é que dessa vez, o risco vem pela própria democracia. O contraditório do contraditório. O complexo de abrigar as diversidades existentes permite feri-la de morte através do voto, a expressão máxima de sua essência. O sufrágio universal. Um direito conquistado com sangue e luta.

Compartilhe!
Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here