Por Lorenzo Falcão*

Dobradinha bacana, escambo de textos, retomada de antiga parceria com o mano ‘véio’ Eduardo Ferreira, pessoa jurídica Cidadão Cultura. Agora se unindo ao estilo boi carreiro comigo, pessoa jurídica Tyrannus Melancholicus.  Escreve alguma coisa aí pra mim…

E precisei ser cobrado novamente por ele para assentir. O Capote?… sugeri, e o cabeça branca adorou. E cá estou vasculhando a memória neste transporte de quase 32 anos atrás, quando tudo começou: uma adaptação livre para teatro do conto (ou novela) de Nikolai Gogol (1809-1852), autor russo, celebridade das letras universais. Mas, antes disso, antes de escolher esse texto, primeiro, veio a vontade de escrever uma peça. É aí que entra Gerald Thomas.

(então escreve, lorenzo, escreve… disse chico, na primeira vez que lhe disse das minhas intenções de montar um espetáculo teatral grandioso que, na sua concepção, se valesse dos ícones culturais mais badalados do planeta naquela época. foi assim que surgiu o grupo de risco, que teve sua nominação influenciada pelo surgimento e expansão da aids. quando falo das minhas conversas com chico, todas as vezes que isso aqui acontecer, que fique bem claro que estava conosco a fátima…)

Lá se vão mais de trinta anos que “O Capote”, texto do russo Nikolai Gogol, carnificou-se na cena teatral mato-grossense. Foi encenado pelo Grupo de Risco, trupe cuiabana antenada nas vanguardas universais que espoucavam naquela antevéspera do novo milênio. Fui autor cúmplice, ao lado de Chico Amorim e Fátima Sonoda, que me deixaram neste mundo ao anteciparem suas partidas. Mas a trupe envolvia muito mais gente das artes da terra naqueles tempos. Além de resgatar “O Capote”, também inauguro uma parceria, através deste texto, com outro endereço virtual, disparador da cultura, sediado neste cerrado: Cidadão Cultura

Imagem aplicada no cartaz do espetáculo

Em meados dos anos 1980 Cuiabá vivia uma intensa efervescência cultural. Todos nós, militantes das artes naqueles tempos e que ainda não partimos para o outro mundo, participávamos. Fazíamos as nossas coisas por aqui, mas, também estávamos plugados no que era feito pelo mundo afora. Tínhamos acesso aos cadernos culturais da grande imprensa, especialmente, o Caderno B (Jornal do Brasil) e a Ilustrada (Folha de SP). E foi nesse tempo – finalzinho da era analógica, de predomínio da inteligência jornalística brasileira nos jornais impressos, que ficamos sabendo do anglo-brasileiro Gerald Thomas. Um cara que gostava dos mesmos artistas e das mesmas artes que nós. Dramaturgo ousado e antenado com o vanguardismo que ribombava pelo mundo.

Já casado com a Fátima Sonoda e nós, grudadíssimos em Chico Amorim, que acabou se tornando nosso compadre, praticávamos uma soberba boemia intelectual. Não foi nada planejado, mas era natural que, além das intensas conversações sobre as artes (e amenidades), desenvolvêssemos algo mais que viesse a ser concretizado.

(em março de 1987 eu e a fátima lemos algo sobre “o navio fantasma”, ópera de richard wagner (1813-1883) , que teria uma montagem revolucionária no teatro municipal do rio de janeiro. na direção… gerald thomas. ora, vamos tirar isso a limpo, pensamos eu e fá, vamos lá ver o que esse cara que lê as mesmas coisas que nós e ouve as mesmas músicas e que gosta dos mesmos artistas, tem a dizer. e #partiu rio de janeiro…)

O trajeto de um ônibus interrompido por uma procissão

Na raridade que é o inverno cuiabano, o ainda embrionário Grupo de Risco, reuniu-se para a apresentação de uma primeira leitura daquilo que seria o roteiro de “O Capote”. Uma lauda e meia era o tamanho do texto. Entusiasmo é palavra que cabe ao sentimento coletivo que impregnou a todos nessa reunião seminal. Além de eu, Fátima e Chico (pessoas saudosíssimas que me deixaram pra trás aqui neste mundo terráqueo), nossa trupe era engrossada por vários outros artistas da época, como Juarez Compertino e Maurício Leite. De vez em quando pontuávamos em eventos culturais com intervenções e performances. Nos denominávamos, então,  os “Novos Caretas”, antes de mudarmos para o audacioso nome que brincava com algo muito sério que assolava o planeta, a aids.

(antes de partir para os bastidores de “o capote” – amedronta-me cometer injustiças -, preciso deixar bem claro que chico, em matéria de autoralidade do que foi o espetáculo, em tudo esteve presente. ele era somente preguiçoso para, por exemplo, escrever. mas tinha muita segurança naquilo que dizia e fazia. foi um dos grandes mestres que tive na vida e me ajudou muito a conhecer melhor e entender a complexidade dos caminhos das artes…)

Bastidores

Não há limites para a criação. E em se tratando de uma adaptação livre… Como trazer para o calor cuiabano uma história que se passa na gélida Rússia, onde o personagem principal morre vitimado pelo frio, após lhe roubarem o capote? Ora, ora… é simples, trocamos o capote por um fusca de segunda mão e aproveitamos pra já amarrar o patrocínio de uma proeminente empresa privada naqueles anos, a Trescinco, revendedora da Volkswagen em Cuiabá.

Luzia Abreu e Maurício Leite em cena evocativa da “Pietà”, de Michelangelo

Na reunião com Sango Kuramoti, dono da empresa, que costumava incentivar as artes, Fátima Sonoda e Maurício Leite discorreram sobre a proposta de patrocínio. A Trescinco, na época, fazia uma campanha de compra de carro “usado novo” (isso acabou entrando no texto da peça como merchandising). A substituição de um capote por um fusca em bom estado caiu bem. Ao final da exposição do projeto, veio a pergunta do senhor Sango: “quanto vocês querem?”

Nessa altura dos acontecimentos, os ensaios já estavam rolando. Lembro-me de ao retornar pra casa após os ensaios, quase sempre argumentar com a Fátima: “A situação está quase irreversível… vamos ter que fazer mesmo a peça”. A expectativa era crescente e todos os envolvidos mostravam-se contaminadíssimos.

Outra alteração que fizemos no texto original, diz respeito ao fantasma do personagem principal. Esse ser fantasioso que retorna para assombrar aqueles que o maltrataram, no nosso “Capote”, volta personificado como o Fantasma – o espírito que anda, aquele mesmo da história em quadrinhos. Aqui nos valemos do exibicionismo, com um ator, trajando um capote sobre sua roupa de super-herói, que enfatizava a exibição da sua genitália aos seus perseguidores.

Da esquerda para a direita: Biri, Munir, Carlão, Mara, Luzia, Lorenzo, Fátima e Marina… naqueles momentos que antecedem a entrada em cena

Com cenário e figurinos elaborados com arrojo por Juarez Compertino, a performance dos atores passava ao largo daquilo que se vê no teatrão tradicional. Excetuando Meire Pedroso, Carlos Gattass (Carlão dos Bonecos) e Maurício Leite, ninguém mais no elenco tinha experiência de palco. Essa liberdade cênica, inclusive, chegou a incomodar alguns militantes do teatro regional naqueles tempos. Fomos acusados de não ser “atores profissionais”.

A trilha sonora dinâmica e diversa, passeando livremente por músicas eruditas clássicas e modernas, pelos sons dodecafônicos, e com direito ao brega. Essa diversidade ajudava muito no toque libertário que era preciso. Schoenberg, Prokofiev, Perla, Arrigo Barnabé, Mozart, Bach, Rimsky-Korsakov,entre outros, eram ouvidos e alguns até dançados, como o hit “Joga Fora”, de Michel Sullivan e Paulo Massadas, catapultado por Sandra de Sá.

A peça se desenvolvia em poucos ambientes, que eram alterados rapidamente pelos próprios atores e através de iluminação. Um bar, uma delegacia, um escritório, uma rua. Basicamente isso. O chão era todo quadriculado em preto e branco, como um tabuleiro de xadrez. Numa das cenas, inclusive, ao som de um tic tac de relógio, os atores movimentavam-se, cada um deles, de acordo com as peças do jogo.

Nas trocas da ambiência também explorávamos referências às grandes obras das artes visuais, como “A dança”, de Henri Matisse (1869-1954); “Vênus de Milo”, de Alexandre de Antioquia (80 a.C.); e a “Pietà”, de Michelangelo (1475-1564).

Juarez Compertino preparando Rosi Pando para o mise en scène na sua metamorfose Perla

Poucas falas, muuuuito mais movimento cênico. Ensaiando, às vezes, ficávamos meio perdidos e nessas situações olhávamos para o Chico, nosso diretor meio ao estilo “papai sabe tudo”, e ele dizia, simplesmente: “tá uma merda, mas é isso mesmo!”.

As apresentações

“O capote” deu uma trabalheira lascada. Entre atores e outras pessoas, teve cerca de 20 participantes. Valeu demais a pena, foi lindo e emocionante pra quem estava na plateia. Imagina pra quem estava no palco. Acho justo que este texto traga pelo menos um parágrafo contendo os nomes (mil perdões se alguém foi esquecido, mas, textos na internet podem ser alterados) de quem participou.

No palco e em outras funções, vejamos se consigo me lembrar de todos os nomes, incluindo elencos de apoio que aconteciam nas apresentações: Biri, Cândida Aguiar, Luís Carlos Ribeiro, Luzia Abreu, Mara Ferraz, Maria Ribeiro, Marina, Maurício Barini, Mauro Peluzzi, Munir Ricardo, Rosi Pando, Sérgio H, Soraia, Valéria del Cueto e Wagton Douglas. Além dos já citados Carlos Gattass, Chico Amorim, Fátima Sonoda, Lorenzo, Maurício Leite e Meire Pedroso. No cenário e nos figurinos, Juarez Compertino. Cabelos e maquiagens, Tany Sonoda.

Atores se movimentando num piso tabuleiro, de acordo com as peças do jogo de xadrez, ao som de um tic-tac de relógio

As apresentações foram poucas, quatro ou cinco, no Teatro da UFMT. Antes da estreia, cumprindo os ritos para que um espetáculo cênico fosse autorizado, encenamos para uma única pessoa na plateia: um censor da polícia federal. Já tínhamos encaminhado o roteiro à PF, mas, quando o japonês da segurança nacional, assistiu com exclusividade, ficou assim um pouco surpreendido,

“Eu não sabia do figurino…”, disse ele, ao final, quando foi cercado por todos nós. Em várias cenas havia uma abundância de partes íntimas expostas, com os trajes inspirados no masoquismo. Além de, na cena final, uns dez ou mais atores, ficarem congelados e totalmente pelados no proscênio. Apesar disso, o espetáculo foi liberado.

Na estreia, dedicada a Wlademir Dias Pino, que estava na plateia, emoções à flor da pele. E um atraso considerável para o começo do espetáculo. Não me lembro da razão disso, mas entrei em cena bastante constrangido. Superei logo, entretanto, já que a empatia foi imediata e, várias vezes, ao longo da encenação, precisamos estancar o fluxo, devido aos aplausos em cena aberta.

Minha memória registra, com “O capote”, muitos momentos inesquecíveis. Interpretei vários personagens, inclusive, o Fantasma (aquela da HQ). Nessa passagem contracenava com o meu vira-lata legítimo – o Chulin, que fazia o papel de Capeto, o lobo que acompanhava meu personagem. Ele era bom pra cachorro em cena. Ficava preso lá atrás das coxias, até que alguém o soltava. Ele entrava em cena e vinha direto até eu. Era muito aplaudido sempre.

Numa apresentação, não sei se por obra do destino ou do próprio Chulin, ele escapou e entrou em cena antes. Na hora em que nos movimentávamos como as peças do jogo de xadrez. Houve um burburinho na plateia, que percebeu o acidente cênico. Ele foi retirado do palco e isso gerou uma vaia da plateia. Canhain!!!

Noutra cena que eu adorava, um ônibus imaginário tinha seu trajeto interrompido por causa de uma procissão e o motorista do ônibus pisava num fusquinha de plástico, que era puxado pelo personagem principal (o fusquinha era o capote). A situação provocava um diálogo curioso: “Ih, olha só… amassaram o plástico velho do cara… é por causa dessa procissão, atrapalhando o trânsito… isso já é palhaçada… palhaçada é uma vírgula, é por causa disso que o mundo tá assim… olha essa aids…”.

Essa cena era alavancada pelo talento de dois grandes atores de Cuiabá: Carlão (dos Bonecos) e Meire Pedroso. Já se passaram mais de trinta anos que trouxemos um texto de Gogol para este cerrado calorento, um texto sobre o qual, disse Dostoievski (1821-1881): “Todos nós descendemos do Capote”.

Maria Ribeiro e Fátima Sonoda, no camarim, explorando as possibilidades cênicas

Maria Ribeiro, minha partner numa das cenas, era sempre um arraso. “Eu só sei fazer duas coisas: ser funcionária pública e trepar”, dizia e as gargalhadas estrondavam na plateia.

Parceiros da cena

“Participar do ‘Capote’ foi uma das experiências teatrais mais positivas da qual já participei. Com um texto ótimo, direção precisa e elenco maravilhoso, pela primeira vez vi e participei de um espetáculo que usava a semiótica e, com maestria, me facilitou a compreensão da linguagem teatral e meu crescimento como ator. O convite para participar foi um prêmio que guardo na memoria e no coração”. (Carlão dos Bonecos)

“O Capote, mais que um convite de boas vindas, foi uma provocação de Chico Amorim para que eu ficasse em Cuiabá e tivesse o privilégio de fazer parte de um acontecimento cultural divisor de águas. Além de conhecer pessoas que na minha vida estão fincadas como flechas arrebatadoras no meu coração”. (Rosi Pando)

“Foi emocionante poder participar de um teatro tão revolucionário e feliz, algo novo na minha vida”. (Luzia Abreu)

“Se algum dia alguém escrever a história do teatro em Mato Grosso, irá encontrar a história do Capote como um grande marco, um divisor de águas nas artes cênicas da nossa capital. Ali havia: drama, humor, música, artes plásticas, artes gráficas, cinema e muito, muito TEATRO. Tetros dos bons, daqueles que ficam para sempre na memória de quem assistiu. Akaki Akakievitch foi um presente que Chico Amorim me ofereceu. Estar no palco em todas as cenas por mais de duas horas, tirar e colocar a roupa, também em cena, mais de três vezes com um figurino apertado e complicado de vestir e despir. O cabelo da personagem desafiava  todas as leis da gravidade e tinha que começar a ser preparado com hora e meia antes do espetáculo. Andar, gesticular, ser espancado, desprezado e humilhado por todas as outras personagens. Viver uma solidão em meio a toda gente. E quando terminava a peça, não havia cansaço, pois o Chico nos ensaiava e repetia e repetia cada cena. Tudo muito bem marcado, quase uma coreografia. Luz, movimentos em cena, gestos matematicamente calculados. Era como seguir uma partitura. Na solidão cênica Akaki só falava na última cena, um pouco antes de morrer. Depois da apresentação eu já estaria pronto e renovado para mais uma sessão, caso fosse preciso. Participar do Capote foi um grande momento da minha vida teatral”. (Maurício Leite)

“Foi uma experiência sui generis, especialmente pelo processo criativo de Chico Amorim. O teatro local resgatava e valorizava o regional e a proposta extrapolava essa visão, impregnando de contemporaneidade um clássico da literatura universal. Quando o palco do Teatro da UFMT se iluminou, a aventura do usado-novo marcou pela linguagem ousada, inesquecível”. (Valéria del Cueto)

De frente para a câmera: Fátima Sonoda, Sérgio H e Chico Amorim

(*Texto escrito para o site Cidadão Cultura, parceiro do Tyrannus. Me resta dizer que “O Capote” foi a incursão mais linda que já fiz nas artes. Que saudades da Fátima, do Chico e do Capote)

Lorenzo Falcão é poeta, escritor, ator, dramaturgo, jornalista e membro da Academia 
Mato-grossense de Letras. Editor e criador, ao lado de Fátima Sonoda, do site 
Tyrannus Melancholicus 

 

 

4 Comentários

  1. lembro-me de Valéria del Cueto petrificada como Vênus, do movimento enxadrista dos atores e da platéia entre vibrante e atônita. o resto virou fumaça em minha memória. nem tenho certeza se foi no extinto Jornal do Dia ou no fulgaz Diário da Manhã cuiabano onde escrevi a resenha/crítica sobre a épica estréia. mas certifico que O Capote foi sim revolucionário e balançou a cultura da Cuiabania Oitentista. um trabalho lindo e que merece todos os aplausos.
    p.s: outra que não me recordo (e até surpreende) é a participação do colega Maurício Barini – hoje vivente no Recife, assim como eu.

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