A música esquecida nas raízes, está ali, na memória ancestral onde muitas vezes é preciso escrafunchar, revirar, garimpar no rio do esquecimento para reavivar. A memória de uma cultura essencialmente negra, contada e cantada em versos só é possível com trabalhos como o de Ana Cacimba, nome de batismo dado pelos ancestrais a Ana Carolina Correia de Assis. Ela é cantora, compositora, pesquisadora, de origem quilombola, uma mistura de paulista com mineira, com um pé no nordeste e o canto afiado na diversidade rítmica e de tradição oral brasileira.

Tive a oportunidade de bater um papo com Ana Cacimba e com seu companheiro Gil Capistrano, parceiro na arte, na história e na vida, com seu lindo filho Bento a embalar a trilha sonora do ambiente. Os dois estão umbilicalmente ligados nessa jornada pelas trilhas da música e da arte. Com um trabalho musical que passa pelo coco, com suas diversas variações, baião, repente, jongo, maracatu, samba, um verdadeiro passeio por ritmos oriundos de nossas raízes populares mais profundas. Ana mergulha na memória musical do povo negro, do povo brasileiro que vive um silenciamento crônico na visão dos contadores da história, os “vencedores” (as elites brancas que compõem o baronato brasileiro – os famosos coronéis, as mesmas forças dominantes desde as Capitanias Hereditárias). Mas a derrota imposta pelo silêncio não impede que as forças das gerações busquem essas histórias e tragam a tona esse vasto conhecimento, seja através da arte, dos estudos, da pesquisa, seja pela tradição oral, seja pelos documentos encontrados (tão raros e escassos). É importante demais essa forma de resistência que experimentamos com trabalhos desse porte,

Quem trouxe a Ana e o Gil para Cuiabá foi a Silviane Lopes, historiadora, estudiosa, pesquisadora, professora, que escreveu um lindo livro, Pérolas Negras, onde fez um trabalho similar com as histórias de Vila Bela. Ela trabalha pelo fortalecimento da rede de mulheres negras empreendedoras e conheceu Ana nessa busca por mulheres para integrar esse projeto em rede. Ao descobri-la percebeu que “Ana Cacimba não é só uma intérprete, uma cantora apenas, ela rompe essas fronteiras, traz essa bagagem ancestral dos cantos que são autorizados para ela. Quer dizer, ela tem a autorização da ancestralidade. O nome Ana Cacimba é mais que simbólico, é um nome pra dar visibilidade às vozes silenciadas de outrora”.

Há mais de 14 anos na música, a paulista de família Quilombola do Vale do Jequitinhonha – MG, iniciou em 2015 uma pesquisa pessoal sobre os cantos de trabalho cantados pelas mulheres de sua família, a pesquisa cresceu e continuou pelos diversos cantos e ritmos tradicionais da Cultura Popular no sudeste e nordeste brasileiro. “O início do nosso trabalho era com percussão e voz pra gente focar nos cantos ancestrais, que são os cantos de trabalho. Eu canto por causa de minha avó e dessas mulheres da minha linhagem que cantavam. Minha avó era lavadeira, parteira e rezadeira, então eu tenho isso no meu sangue. O canto da lavadeira está na forma como eu canto, os brincos e acalantos que são cantos da parteira e as rimas que são da rezadeira, também. Mas, nosso trabalho evoluiu e hoje estamos com uma banda maior, com guitarra, baixo, batidas eletrônicas, DJ, percussão, tem essa mistura, com o hip hop, com o rock, com as influências que cada integrante trouxe.”

Cacimba iniciou sua vida artística no teatro aos 12 anos de idade, começou a cantar aos 16. Cursou teatro e dança no CLAC – Centro Livre de Artes Cênicas de São Bernardo do Campo no ano de 2016. Participou do grupo percussivo Mucambos de Raiz Nagô.

Formou-se em 2017 no curso Formação de Novos Brincantes e no Curso Brincante para Educadores pelo Instituto Brincante. Foi uma das coordenadoras do projeto Maracatu Mirim Diadema, fundou em 2016 a Cia Arcos e Fitas junto ao percussionista Gil Capistrano, criou o Projeto Minas de Resistência e coordena o Baque feminino de mesmo nome na cidade de Diadema.

Ela está ministrando oficinas em Cuiabá com o Curso de Extensão Cultural “O Brincante e o Brinquedo – Manifestações Culturais Tradicionais do Nordeste”, que tem por objetivo estudar a pluralidade e riqueza da cultura popular brasileira, seu reflexo, sua ideia de tradição, memória e patrimônio.

Ana Cacimba e Gil Capistrano estão encantados com Cuiabá. Além das oficinas, na MT Escola de Teatro e no Colégio Maxi, eles estão participando de saraus, conhecendo a história do estado e como disse Gil Capistrano, “está difícil sair daqui, ir embora, esse lugar é encantador!”. Fiquem então, vamos engrossar esse maravilhoso caldo de cultura que vem balizando Mato Grosso e Cuiabá. Sejam bem vindos!

 

 

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