Sob o título “HQ sem Fronteiras” publiquei um texto sobre o artista visual, escritor, roteirista, Wander Antunes, quando trabalhei no projeto Overmundo, e resolvi republicar ao ver na tela da TV a série global Cidade Proibida. Como foi dito no texto na época, existia um desejo e uma esperança do autor em ver o personagem Zózimo Barroso nas telas do cinema, vemos agora na telinha da Rede Globo a sua personificação em carne e ossos na imagem do ator Vladimir Brichta. Wander morou muitos anos em Cuiabá, sempre atuante e provocador estivemos juntos em vários projetos. Por onde anda Wander Antunes?

HQ sem Fronteiras – publicado originalmente no site Overmundo em 27 de junho de 2006.

Wander Antunes dedica uma vida aos quadrinhos, seja criando, editando revistas ou simplesmente filosofando sobre o tema

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Entre tantas tintas, entre textos, paginações do imaginário, argumentos loucos, bem humorados, épicos, montanhas, faroestes, Stan Lee, Moebius, legendas, lendárias figuras, Edgar Rice Burroughs, Tarzan, Zorro, Batman o eterno Cavaleiro das Trevas, subterrânea criatura dos escuros mundos das trevas, Marvel, estantes prateadas do surfista, Antonio das Mortes, Jean Girou, que também é Moebius – em meio a tudo isso, alguém brada com a força de todos os pulmões juntos: “Meu projeto de vida é HQ”.

O que leva algumas pessoas a se diferenciarem de outras quando seus projetos de vida estão em xeque? “Mate-me se puder!” dizem alguns desafiadoramente. Destemidos como heróis que se desmancham e se recompõem com as porradas da vida. Diferente daquele anti-herói, o personagem Pessoa, sim, o poeta Fernando que diz se abaixar, tão reles, tão vil, ante a possibilidade do soco! “Ora, homem que se preza tem que aprender a levar porrada!”, diria um herói desses qualquer da Marvel, por exemplo. Mas HQ é uma coisa, poesia é outra, dirão os incautos. O outro responde: “A atitude é poética quando você ultrapassa os limites da vida comum e abraça as santas tragédias que darão uma dimensão épica para sua vidinha tão normal, tão banal, tão comum que faria corar o mais reles dos heroizinhos que a indústria americana incutiu em nossas cabecitas de cucarachas tontas.” Tontas tintas.

Vamos organizar o roteiro dessa história? Afinal, cadê o herói?

Wander Antunes está à beira dos quarenta anos, leva uma vida que ele diz ser muito linear, tudo certinho, tudo normal, sem grandes aventuras, sem grandes tragédias. Isso é o que ele diz, mas ouso afirmar que do meu ponto de observação percebo que esse discurso parece fazer parte de mais um de seus argumentos que viajam por estradas já bem longínquas, muito além daquele quarto-mundo que ele vive e utiliza como um banker, gueto, caverna, sei lá o quê.

Depois de tantas idas, voltas, revoltas, vindas, vida se esvaindo na boca do tempo, com seus eternos dentes a triturar carnes, espíritos, memórias, histórias e pré-histórias, Wander Antunes está com sua carreira em franca ascensão rumo a um profissionalismo sem fronteiras. Escreve para uma editora suíça, que fica em Genebra, a Paquet, que tem um editor-empresário, Pierre Paquet, um visionário segundo nosso herói, que vive de revelar e juntar talentos de países periféricos. Wander, por exemplo, escreve para os desenhos do Walther Taborda na Argentina, Toni Sandoval no México, Tirso Cons na Espanha, José Aguiar no Brasil, e por aí vai. As publicações da Paquet são sofisticadíssimas, álbuns de luxo, coloridos, papel de primeira, capas grossas, em língua francesa, distribuídas em países como Dinamarca, França, Suíça, Canadá e Bélgica. Ele foi premiado na França com o álbum Big Bil est mort, história de sua autoria com desenhos de Whalter Taborda. Faturaram o Prix Marlysa: Le Coup de CoeurChambery BD, um importante prêmio francês.

Conversando com ele, antes mesmo de minhas primeiras provocações sobre o fato de escrever histórias ambientadas em outros lugares, já engatava justificativas, como um motor ritmado, pronto para avançar sobre visões restritivas, sobre temas como regionalismos, nacionalismos – não consigo deixar de provocar e pergunto: “Como é isso de escrever para geografias como o sul dos Estados Unidos, por exemplo, histórias que se passam em outros territórios, outras paisagens…?” Ele rebate de pronto: “Escrevo para qualquer lugar, o homem é o mesmo em qualquer lugar, minha imaginação constrói histórias a partir de minhas referências literárias, como Ernest Hemingway e William Faulkner; cinematográficas como John Ford, James Stewart, Henry Fonda; dos quadrinhos como Tarzan, Batman. Meus heróis de todos os tempos me dão a noção precisa de outras realidades. Os sentimentos são os mesmos aqui ou em qualquer outro lugar. Já escrevi muitas histórias ambientadas em Mato Grosso. Meu maior herói no Brasil é Nelson Rodrigues, tenho um personagem que é reincidente, o policial Zózimo Barroso que é pura inspiração livre a partir do Rio de Janeiro dos anos 50, com um olhar a lá Nelson Rodrigues, com o Rio como cenário”. Emenda de forma definitiva: “O que eu não aceito é ficarem me cobrando um compromisso com um país que não tem compromisso comigo!”

Calo-me, fico meio sem jeito. Inquieto, fico pensando naqueles roteiristas que se profissionalizam de verdade e que escritores podem viver no mundo da lua e inventar histórias em qualquer lugar ou circunstância, que é um exercício-ofício-maldito de suprema liberdade e que não existe verdade maior que qualquer outra no campo da imaginação. Penso também que a questão não é tão simples assim, que Nelson Rodrigues escrevia crônicas cariocas cotidianas, das quais ele fazia parte, seja como participante ou como voyeur, que ele transpirava aquilo tudo, que ele respirava os dramas da Tijuca, as tragédias do Méier, de Copacabana, que acho difícil (nunca disse a palavra impossível) deslocar o eixo imaginativo para outras torres, outros mares… Que a alma passeia pelos contornos dos lugares em que vivemos, comemos, defecamos… Sei lá, cada louco com sua escrita.

Relembro de seus projetos culturais como a publicação da revista Vôte!, com uma linha editorial que misturava HQs, contos, poesias, crônicas. Uma publicação de muita qualidade mas que não sobreviveu às sangrentas batalhas de um mercado frágil, que não produz condições de auto-sustentação, sempre dependendo de alguma coisa, de recursos principalmente, de distribuição que é o ‘nó do gargalo’ de qualquer produto. Ele era um grande chorão, mas fazia! Isso é o mais importante. Aliás, continua fazendo, é o editor da Estação Leitura, que tem uma tiragem de 15 mil exemplares, segue uma linha editorial semelhante à Vôte! e é patrocinada pela Lei Estadual de Cultura, através do Fundo de Cultura. Falei na lata: “Você melhorou demais, antes você era quase insuportável de tanto reclamar”. Riu e disse do alto de seus quase 40 anos: “É a idade, é a idade.”

Wander foi editor também, entre 2000 e 2001, da revista Canalha, quadrinho para quem não torce pelo mocinho, que considero uma das boas edições de HQ no Brasil, publicada pela editora Brainstore em parceria com a Plural, que levou o mais importante prêmio brasileiro dos quadrinhos, o HQMix.

Wander Antunes sonha em levar o personagem Zózimo Barroso para as telas do cinema. Desenha muito bem, mas agora só quer escrever. Cara de bom moço e criador de personagens transgressores. Vida e arte bem separadas, nada de imitações. Imaginar não paga passagem. Nosso herói é resoluto: “Não tenho nada para contar sobre minha vida!”
Fim.

Wander Antunes e Marcello Fontana

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