Por Tiago Strassburger

Em uma madrugada pouco agradável, em que uma súbita e inexplicável ansiedade atrasou em algumas horas o meu disciplinado sono. Despertei-me com um ruído ensurdecedor após finalmente pregar os olhos. A janela do meu quarto trepidava em um ritmo quase que inacreditável. Rapidamente estendi a mão para o lado do criado, onde apanhei meus óculos e derrubei um copo d’agua que se desfez em cacos ao colidir com o chão. Olhei para o relógio, que marcava 3:34, e ao virar o pescoço para o outro lado, espantei-me com o fato de minha amada esposa continuar dormindo com aparente profundidade. A sacudi algumas vezes e, tomado de preocupação, cheguei perto de suas narinas, constatando que respirava normalmente: “Ufa, Lúcia não tá morta”.

Enquanto o tremor da janela aumentava e o som se tornava insuportável, em um instinto de proteção estiquei meu braço para de trás da cabeceira para pegar minha arma, e antes que pudesse alcança-la, a parede que abrigava a tremula janela começou a se desfazer em pedaços, fazendo com que uma intensa claridade invadisse o aposento conforme o concreto ruía. Foi nesse momento que cogitei estar em um sonho, e assim concluí quando o concreto, já ao chão, revelava na madrugada uma paisagem diurna da mais ensolarada, iluminando um trem estático em cima dos trilhos.

Abracei meu revolver e decidi não me entregar ao sonho, virei para o canto ao mesmo tempo que enfiava a cabeça embaixo do travesseiro, já sabia que, de acordo com meus hábitos, logo acordaria para ir ao banheiro e voltaria para a realidade.

Mais de 40 minutos se passaram e não consegui me livrar do sonho, o trem ainda estava lá, com as ruínas de minha parede próximo à minha cama de casal, apontando para o leste, como se esperasse um único fio de minha curiosidade para me deixar acordar ou pelo menos trocar de cenário.

Levantei-me vagarosamente e constatei resmungando que, para uma fantasia, a dor que carrego em meu joelho esquerdo desde o início do ano continuava real, ao contrário de não ter sentido nada quando olhei para o chão e lembrei que, minutos antes, havia derrubado um copo, que aparentemente rasgava a sola do meu pé, mas sem derrubar uma gota de sangue no assoalho.

Caminhando cuidadosamente, procurando o caminho mais fácil em meio aos escombros, senti uma brisa em meu rosto enquanto meus pés descalços já tocavam o gramado, mas não era uma brisa qualquer, naquele momento pude apreciar um vento que entrava por cada poro de meu corpo, por cada ruga de meu rosto, passando por meu ser como se eu não estivesse ali, me fazendo sentir parte de um assopro.

Meu corpo já não estava cansado e a minha dor na perna, diagnosticada crônica, havia se transformado em um leve e prazeroso formigamento. Então a porta do trem se abriu e nesse momento tive a sensação de despertar, mas acordei ali mesmo, sentado na poltrona de um dos vagões. Olhei pela janela e me vi lá, deitado inanimado em minha própria cama, ao lado de Lúcia aos prantos, que apoiava uma das mãos trêmulas em meu peito e com a outra segurava o telefone, pedindo socorro gritando o nome de nossa filha.

Naquele momento, percebi que as lagrimas de minha velha Lucia batiam ali, em meu corpo esticado na cama, mas refrescavam no trem a minha alma que lá estava. Procurei alguém que pudesse me deixar sair, pelo menos para ver seu rosto de perto mais uma vez antes de embarcar, mas em vão, meus gritos ecoavam no vazio daquele vagão já em movimento, em que eu era não só o único passageiro, mas o único presente. Foi a única vez que não pude consola-la enquanto chorava e que a ví sofrendo e não pude estender a mão. Queria dizer o quanto eu a amei, mas já seguia sobre os trilhos de uma viagem sem volta.

Apague a luz, Lucia! Volte a dormir, que um dia nos reencontraremos.

 

Tiago Strassburger é escritor e agitador cultural em Primavera do Leste-MT

Comentário

  1. o mais engraçado de tudo é que, esse conto foi enviado pelo meu amigo e colaborador-articulador Demétrio Panarotto, lá de Chapecó, Santa Catarina, rsrsrs. O autor e o ilustrador moram bem próximo de Cuiabá, em Primavera do Leste. Ironias da internet, nossos vizinhos não moram ao lado.

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