Por Júlio Custódio*

“O jovem do ensino médio não pode ficar com doze matérias, incluindo nas doze matérias, Filosofia e Sociologia. Não tenho nada contra a Filosofia e a Sociologia, mas um currículo com doze matérias não atrai o jovem.”

Quando essa frase é dita por alguém sentado – legitimamente ou não – na cadeira da Presidência da República, fica claro que algo está muito errado no próprio conceito oficial de “educação”. Duas questões deveriam ser evidentes pra quem presencia tal fala. Primeira; qual o motivo de ainda confiarmos a educação aos políticos? Segunda, em escusa aos amigos filósofos, diplomados ou não, por um leve exagero; como ensinar Filosofia no ensino médio se raramente ela é ensinada no ensino superior, inclusive, nos cursos de Filosofia? Aqui deveria também surgir uma suspeita: estariam as duas questões relacionadas? Vamos ao primeiro ponto.

O fato de termos receio do que um Bolsonaro, um Raul Castro ou um Temer possam fazer com o poder político em suas mãos, deveria ser um alerta contra o tamanho desse poder, e não combustível na defesa de um quase-sempre-autointitulado-oposto-político. Na era das bolhas virtuais, um comentário e um like te definem. Como isso não definiria também os partidos políticos? Independentemente inclusive das ações, as hashtags viram rótulos categóricos de pacotes das tribos sociais. Isso ajuda esconder, sob a poeira ilusionista levantada pelas brigas partidárias, a perpetuação de uma classe inteiramente alheia aos desejos da sociedade produtora. Não mais deixamos o Estado interferir em nossas religiões – ou ausência de – e estamos quase conseguindo que não mais interfiram com quem ou como fazemos sexo. Um tabu só é um tabu por ser difícil de quebrar. Dirigentes do Estado são mestres em fomentar tabus, inquebráveis e socialmente fundamentais, sustentando a base de toda uma ética populacional, tão neutra quanto os dados oficiais do Governo.

c70282daba63a94f7cb7a447c9e5a7d387bf25bb

Talvez o mais intocável tabu político é tomar como axioma a necessidade do Estado no direcionamento e na distribuição de uma educação eficiente e justa. Qual o sentido disso? Assim como não pode direcionar minha religião ou minhas preferências amorosas e sexuais, o Estado também não poderia direcionar minha educação. Contudo, controlar os rumos da educação sempre foi estratégia fundamental na manutenção longeva dos interesses do poder público. Não pelo conteúdo ‘crítico’ contido em áreas como Filosofia ou Sociologia, mas sim pelo conteúdo da propaganda. Por que incluir Filosofia no ensino médio? Ora, por capital político. Por que retirar Filosofia do ensino médio? Ora, por capital político.

direita-esquerda

A distinção direita/esquerda, embora real, serve no fundo pra secretos acordos politicamente ambidestros no intuito de proteger e dar manutenção aos eternos privilégios dos Administradores. Pra piorar, de certo modo, a política está intensificando hoje um agravante só encontrado em seitas e cultos religiosos: a relativização moral dos ídolos pela militância. O fenômeno é tão forte que não só são aceitas brincadeiras, piadas, propostas ou até mesmo ações que seriam veementemente combatidas se feitas pelo quase-sempre-autointitulado-oposto-político, mas que, de tão pouca importância oferecida pela cognição, o organismo nem processa a informação. Ou reconfigura tudo antes de chegar à consciência. O militante realmente não viu seu ídolo fazendo ou falando aquilo. Anos depois, não se lembrará, aquele conjunto de dados não fará parte da cadeia de raciocínio, e nisso o militante é sincero. Tal mecanismo é um tempero fundamental na paixão por um Trump, um Lula, Castros ou Cristos.

Repetidas por gerações, pequenas informações e ações oficiais direcionadas aos complexos elementos de uma população, da escola aos movimentos sociais, da pesquisa à mídia militante, aos poucos, com imensa eficiência, vão se fortalecendo e até mesmo cavando novas e irreparáveis trincheiras culturais. Com o poder da educação em suas mãos, as Autoridades Estatais enfim se tornam os representantes e juizes legítimos da cultura, e daí se inicia uma espécie de pulverização; de onde a população – principalmente a porção universitária e cult – não mais perdoará o Governo que não focar primariamente em questões culturais e educacionais. A armadilha bateu. Então o Estado sorri e diz: “Estou apenas atendendo o desejo do povo!”. Sob o longo e reprisado mito do ‘fomento’ da educação e da cultura, de maneira extremamente sutil, os planos intragáveis de um Estado Cultural são aplaudidos por todos os grupos. Como qualquer religioso que conversa com Deus, não há mentiras nos desejos do militante. Os grupos ardem de justificativas emotivas e sinceras e, por isso mesmo, facilmente redirecionáveis quando agradadas.

Praça dos 3 Poderes em Brasília
Praça dos 3 Poderes em Brasília

Os três poderes se mantém em trindades políticas fortemente unidas, enquanto os partidos vão se firmando como focos de contágio da segregação cultural. Pra cada grupo político ou movimento social que surge, o Estado manda um like. O militante, da esquerda à direita, é um eterno carteiro se achando o remetente da carta. O “pensamento crítico” se torna um eufemismo pra memorização do index prohibitorum do lado preferido. Como um programa feito exclusivamente para conter um bug no software cultural, a democracia é utilizada justamente para perpetuar a falta de soberania da população, que ainda agradece por isso. Vale notar que a frase citada no início do texto, como os fatos claramente nos mostram, poderia muito bem ser de Michel Temer ou qualquer outra figura vampiresca do seu absolutamente questionável partido, mas foi dita por Dilma Rousseff no ano de sua reeleição à presidência da República, sob a égide da “Pátria Educadora”; e é revelador ver como tal foi apaixonadamente esquecido por seu partido quando, meses depois, o Interino propôs algo parecido, evidenciando como é um absurdo deixar o direcionamento da educação no fogo cruzado dos interesses partidários.

Se a religião, o sexo ou o comércio não são livres quando direcionados pelo Estado, como poderia ser livre logo a educação? E chegamos aqui no segundo ponto: se é apenas com imensa licença poética que podemos chamar de “educação” seja lá o que for isso que o Estado nos apresenta, como podemos chamar de “Filosofia” o que estão querendo retirar do ensino médio?

Pelo fato dessas propostas terem deixado tanta gente alardeada, algum desavisado poderia pensar que algo de bom estava sendo feito e que, de repente, por maldade política, vão parar de fazer. Não é aqui o caso. Vocês querem dizer então que ensinavam Filosofia no ensino médio? Lembrando que exceções são exceções, a singeleza generalizada do vazio pedagógico chega a soar fantasiosa.

A biologia evolutiva nos ensina como longas e densamente elaboradas estratégias de grupos podem surgir e perpetuar sem ninguém mesmo pensar, planejar ou se dar conta que elas existem. Estratégias de fomento à educação – como toda ação política – são também estratégias evolutivas que procuram se estabilizar no borbulhar das populações. Isso aconteceria ainda que a educação fosse livre, imagine, então, direcionada pelo Estado. As estratégias são friamente filtradas pela seleção artificial do Estado na rotatividade dos Governos pelas gerações. A classe política, de forma natural, age como um organismo em busca de defesa. No suposto brigar dos lados partidários, vão sobrando estratégias específicas, ainda que não planejadas, que lutam enquanto modus operandi para perpetuar os meios da burocracia oficial e, principalmente, reafirmar a necessidade de uma democracia hierarquizada. Os partidos políticos atuam como ingredientes criando tensões já pré resolvidas de modo que a soma vetorial aponte sempre para os interesses das Autoridades Estatais e de seus escolhidos.

justicacaolha

A nação ainda padece pela sombra de seu pai, Dom Pedro I, “tudo farei para o povo, porém nada farei pelo povo”, definindo a política brasileira desde seu início. Querem Filosofia no ensino médio? Vocês terão, contabilmente falando. Uma horda de professores pessimamente formados no intuito de melhorar os dados da propaganda estarão largados à sua espera; ou pelo menos de seu nome na matrícula pra justificar os proventos. Uma porção perigosamente grande de filósofos e cientistas sociais, desses formados, de títulos mil, não saberia responder se dois sétimos é menor ou maior que sete nonos, ou mesmo citar as três leis de Newton.

Tal não se dá por lapso de memória ou erro de cálculo, pois há já um orgulho em não se interessar por tais ‘pontos de vista’, e se justificam com imensas pós-ideias sobre a desformatação estrutural e transresidual dos betaprocedimentos que… O resultado, enfim, é a transformação do direito de discordar em pura ignorância elogiada. Dizem que na entrada da Academia de Platão havia uma placa com os dizeres “Não entre aqui quem não souber Geometria”, o que foi provavelmente traduzido pelos atuais excelentes doutores de departamentos para algo como “Só entre aqui quem não souber Geometria”. O profundo desconhecimento das ciências exatas e naturais e o descaso com que são tratados os avanços científicos e tecnológicos chegam a ser sintomáticos; os dois lugares onde Darwin e a Teoria da Evolução são mais rejeitados são nas Igrejas e nos cursos de Filosofia…

Como criticar, ou sequer compreender, as atuais consequências de políticas econômicas ou descobertas científicas sem o conhecimento e um mínimo de treino em matemática, lógica ou computação? Isso, porém, não nos estranha, agravado pelo modo como é feito o direcionamento de toda a educação. Seguindo a pulverização, pelo fato da Filosofia ser a base de qualquer avanço do conhecimento, ela é separada das outras áreas junto com o concreto que separa os departamentos nas universidades. Os profissionais da Filosofia precisam justificar as quatro paredes dedicadas a eles e assim inventaram – eis outra estratégia não necessariamente planejada – algo que seria ‘puramente filosofia’, um modo de olhar, um modo de ler, um modo de criticar, de manusear conceitos ou um modo de qualquer coisa que convença quem quer que precise ser agradado pra garantir o departamento. Sem falar na produção exemplar de professores de tais ilusões numa velocidade que faria Ford se orgulhar. De forma plenamente tranquila, com o direcionamento da educação pelas mãos do Estado, o suposto filósofo faz um acordo político tácito, por puro instinto de preservação: garanta a minha existência que eu garanto a naturalidade da educação sob vossa direção, querido Leviatã.

Estamos porém atravessando agora já mais de vinte e um séculos da Era Cristã, e deveríamos já saber muito bem como age o ardiloso Escrivão das Sombras. Às vezes ele tira, às vezes ele coloca. Apoiar o Estado no direcionamento da educação e reclamar depois que Ele quer tirar ou pôr Filosofia ou Culinária no currículo é justamente não compreender como o Estado funciona, e como, certamente, sempre funcionará; e toda vez que filósofos e educadores – me abstenho aqui de falar dos nossos nobres artistas – não percebem isso, o Estado manda outro like.

*Júlio Custódio é filósofo e músico

Comentário

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here