Despertei enferrujado, quase velho, calcei os chinelos de pano vermelho desbotado e decidi abrir a janela para encontrar algum ar fresco. Não me espantei ao encarar uma cidade silenciosa e úmida: os únicos resquícios de vida que ocupavam esse mundo eram aquelas malditas, repulsivas e asquerosas mariposas que voavam em volta do também único poste da rua. Formavam nuvens esbranquiçadas e, ao raiar do dia, jaziam quietas e desprezíveis no chão, ao pé do poste, onde os cachorros mijam.

A maioria das coisas de lá, de onde eu vim, era única, mas isso não significava que fossem boas ou ímpares, ou que talvez me transformassem num indivíduo privilegiado. Dividiam-se num único mercado, num único hospital, até mesmo num único puteiro, enfim, num único e unilateral modo de viver e espionar o passar dos dias alheios. E após dividirem-se, uniam-se todos pela insignificância. A grande e estúpida união pela mesquinhez, pelo cochicho e pelos olhares de canto de olho.

De qualquer forma, abri a janela para tomar um ar fresco e o que acabou atingindo-me em cheio foi uma lufada de problemas e pensamentos, que no momento significavam a mesma coisa. Num sobressalto, ouvi o despertador: hora dos remédios. Arrastei-me até a cozinha, mais precisamente até um armário branco e velho de madeira, num ângulo reto onde o balcão era o cateto A, enquanto a parede inútil do quadro de mau-gosto fazia as vezes de cateto B. Lá encontrei, sem nem mesmo olhar, a caixa que usava para guardar meus remédios. Maldito vício do hábito que nos faz até mesmo enxergar no escuro.

Rabiscada na tampa, destacava-se a inscrição “caixa da doença”. Abri-a e encontrei prontamente meu fiel companheiro, Haloperidol. Comprimidos numa mão, um copo d’água na outra, enfiei-os goela abaixo. Instantaneamente, como se aquele comprimido contivesse 500mg puras de melancolia ou qualquer fossa do tipo, me senti sozinho num mundo que não me pertencia. Ao mesmo tempo, senti que, se algum dia estivesse em apuros, o que chegaria até mim não seria a heroica e midiática mão salvadora, mas uma rajada de projéteis disparados por aqueles estúpidos olhares.

Alma dilacerada, eu carregava a certeza de que jamais poderia contar com quer quem que fosse. Quanta solidão, tudo o mesmo nada. Melhor dormir logo, deixar o tempo escoar aos poucos para ver se as coisas melhoram. Se não houver melhora, pelo menos metamorfose.

Era madrugada quando acordei espontaneamente. Abri os olhos, simplesmente, como se não tivesse dormido um segundo sequer. Completamente lúcido busquei o relógio digital no criado mudo. As irritantes luzes vermelhas indicavam quatro e cinquenta da manhã. Calcei novamente o surrado chinelo de pano e fui até a janela. Olhei novamente para aquelas das quais senti nojo anteriormente. As mariposas unidas, batendo suas frágeis e ojerizas asas, todas elas sedentas de luz e calor como qualquer ser, humano ou não.

16991635._SX540_A hipótese de virar uma delas atraía-me no começo, sutilmente, como uma mulher que se insinua aos poucos. Matutei a ideia durante uns bons não-sei-quantos minutos e decidi que queria sim, queria juntar-me àquela nuvem disforme de asas e patas e aquele pó que dizem deixar cego. Reparei numa mão, na minha mão, tocando a trava metálica da janela. Três andares abaixo um cachorro latia choroso, mas já tinha ido embora. A perna esquerda primeiro, debochando da superstição. Instantes depois, já de corpo inteiro na balaustrada e seguro como jamais estive, respirei fundo. Ouvindo o chamado, quis voar e então voei.

Lamentavelmente tudo era um sonho.

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