Por Glauber Lauria*

Por motivo de um Amor-feérico-fulminante-sígnico-poético eu havia feito uma transferência-interna-facultativa e cursava letras-francês-ufmt em Cuiabá. À época o curso ficava no Instituto de Linguagem e com poucas semanas de aula, e passadas diárias à banca do saudoso Poeta de La Trasmutacíon, Antônio Sodré. De tanto namorar livros que não podia comprar, fui lá trabalhar. Tenho certeza que ele viu em meus olhos tamanho desejo de livros que pensou com ele, vai ficar tudo em mercadoria. Aliás, comecei a trabalhar lá já devendo vários dias de diárias por conta de uma biografia do Proust escrita pelo italiano Pietro Citati, que, diga-se de passagem, nunca li. Fomos amigos instantâneos, era soberbo conversar com ele, vivia ralhando comigo por não ter lido Joyce. Podíamos falar sobre tudo. Quando ele dedilhava a viola, se lembrava de Elomar, quando desenhava delicadas nervuras de folhas secas coloridas, poderia se referir a Klee, ou dizia sobre a importância de Glauber Rocha, lia todos os dias. Com o tempo era eu quem digitava e enviava por e-mail suas crônicas semanais para o Jornal Folha do Estado. Um belo dia depois da aula, – ele trabalhava de manhã, eu à tarde e estudava a noite – guardávamos os livros quando ele disse: Um amigo meu escritor vai passar aqui, vamos tomar um vinho na casa dele, quer ir? Pô Sodré, to sem grana, fica chato. Tô te convidando, ele passa, nós compramos o vinho e vamos. Uai, beleza então.  Vai a inocente criatura cair no meio dos Cashimere’s. Eduardo aparece na banca, estamos terminando, Sodré me apresenta, diz me levar, ele, só sorrisos e pressa na hora me abraça repete o convite e já estamos partindo de carro. Cara bonitão, figura alta, esguia, tênis all star, calça jeans justa, camisa preta, Hollywood fumegando na boca, cabelo em neve. Pensei comigo, tem cara de escritor. No banco de trás, observo dois velhos-camaradas-parceiros-artistas conversarem efusivamente. Eduardo reclama do preço do vinho, queria comprar o chileno Santa Helena, diz o preço, Sodré chia. Intervenho: Oh, tá rolando um vinho argentino em promoção de sete reais Santa Anna – isso foi há muitos séculos -, os dois ao mesmo tempo: Onde? Supermercado tal. Acho que foram quatro ou cinco garrafas. Não tinha nem um puto mas tinha dado a dica. Partimos de volta no maior clima bacana e chegamos em minutos. Era uma reunião íntima. Eduardo e esposa, Sodré e eu. Perguntei se poderia fumar me entregaram um cinzeiro, o vinho foi servido, ficamos à vontade. Os dois pareciam rajadas de semi-automáticas-literárias, não deixavam ninguém falar. Era incrível a transformaçíon-transmutacíon de Sodré quando tomava um golinho. Sóbrio, sofria de leve disfunção fonoaudiológica, coisa que o álcool corrigia em dois palitos. E deixava o rapaz deveras eloqüente. Desgraçadamente um dia cheguei até lhe recomendar que fizesse um uso mais constante de aperitivos, acabei tomando uma dura por beber demais e estar destruindo minha saúde. Eduardo revisava frenética e empolgadamente como-o-de-ser, as provas finais de seu endiabrado-fluxo-experimental-romance, “Eu Nóia”. Era uma noite-privilégio-divina-de-vinhos-artistas e eu estava muito feliz de estar ali. Ele lia trechos escolhidos para nós que agora nos quedávamos em silêncio, estupefatos com a densidade daquele texto que daí há dias estaria ao mundo entregue. Comentávamos aquilo que ouvíamos, já me sentia em casa. Sodré leu suas composições recentes – às vezes eu entregava para ele os poemas que ele escrevia em tiras e atirava ao cesto da banca, absorto como um monge budista, dava para ver ele envolto naquela túnica amarelo-mística – sempre com aquelas inventividades verbais que poderiam fazer um surrealista-suar-permanganato-de-potássio-cítrico-oxidado. A noite corria transcendental em letras. Lá pelas tantas, olham pra mim: E você? Sodrezinho logo entrega: Ele escreve. Começa a pressão. Me esquivo, desconverso, puxo outro assunto. Sodré: Escreve bem até. Os dois em pé. Encantoado, me rendo. Abrindo uma bolsa lateral cor modelo sucam, puxo de “Luz em Agosto” que estava lendo. Lá dentro, dois magros poeminhas juvenis escritos no balcão da pastelaria ao lado do ponto de ônibus na calçada da facu, confesso, rabiscados bebericando uma skol lata na sordidez de quarenta e oito graus das três da tarde durante o horário de trabalho, naquele mesmo dia. Tusso, tomo um gole, acendo um cigarro, leio – como queria que eles existissem agora pra enfiá-los aqui – e pra minha surpresa e admiração, os dois gostam, louvam até, aquilo tava uma rasgação de seda danada! Eduardo tinha criado A Fábrica, editora que reeditaria o premiado livro de estréia de Ricardo Guilherme Dicke. Me disse que logo que as coisas se ajeitassem, me queria em seu catálogo. Quase tive um troço. Dois caras cultos-bacanas-maduros com livros importantes no cenário de Mato Grosso me dizendo aquelas coisas. Eduardo fez pior dias depois, passando pela banca a tarde – ia dar uma palestra sobre mídias e música contemporânea no instituto – me disse que dando uma entrevista para o site Overmundo no qual trabalhava, perguntado sobre a jovem poesia mato-grossense dissera, conhecendo dois poemas meus, que eu representava essa promessa! Falei: Você não disse isso não! Ele sorriu na maior fleuma, me abraçou e foi trabalhar. E num é que tava lá no site mesmo? Pensei comigo, porra, que galera foda. Foi assim que eu conheci o Eduardo. Espero não tê-lo decepcionado.

*Glauber Lauria é poeta mato-grossense e mora no mundo. 
Nascido em 1982, publicou de forma independente o livro Jardim das Rosas em Caos, 
já participou de três antologias em diferentes estados brasileiros e possui poemas 
publicados nos seguintes periódicos Sina, Acre, Fagulha, Grifo, Expresso Araguaia 
e A Semana.

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