Lançado em festivais no segundo semestre de 2015, o primeiro filme do diretor e roteirista Robert Eggers, tem dividido aficcionados do cinema fantástico de terror desde sua estréia. O filme “A Bruxa” que só chegara ao Brasil em fevereiro do ano passado, vai contra os maneirismos desta geração de terror para não só apavorar, mas discutir o pecado e o mal da natureza humana.

Após tentativas falhas de adaptar seus roteiros originais, tachados de “estranhos e obscuros demais”, Eggers decidira focar-se em um filme de gênero – no caso o terror – e trabalhar seus detalhes para adaptar sua visão torpe do mundo. O diretor, que confessara ter um fascínio por bruxas desde sua infância, iniciara então uma meticulosa pesquisa que envolvera cartas, depoimentos e documentos do século XVII, onde sua história se situa.

A trama gira em torno de uma família de peregrinos devotos, que após serem expulsos de sua comunidade por irem contra os preceitos de sua igreja, precisam lutar para sobreviver no meio de uma floresta isolada. Assolados por pragas e más colheitas, a vida da família começa a desmoronar quando o filho recém nascido desparece e a culpa recai sobre Thomasin, a filha mais velha. A menina, doce e delicada, alcançara a adolescência e florescia como uma bela mulher, para a preocupação de sua fervorosa mãe.

“Ela está iniciando o pecado da feminilidade” diz Katherine para seu marido, deitados abaixo de seus filhos, que escutam atentos no sótão. William, seu marido, reluta acreditar que o pecado de sua filha danara o destino de sua família. É neste ambiente de dúvidas que Mercy, a filha mais nova, levanta o boato de que Thomasin é uma bruxa.

Rodado em Ontario no Canadá após uma busca infrutífera pela locação que melhor representasse New England, onde a história acontece, o filme tem suas externas filmadas todas em luz natural e utiliza apenas luz de velas para os interiores, o que lhe concede um ar quase documental se não fosse pela estilização dos quadros e o olhar artístico que os planos de Eggers contém. A trilha, que consiste em violinos e um coro de vozes que remetem diretamente às peças obsucuras de Ligetti só alimentam a claustrofóbica atmosfera que o filme gera. Mais próximo de clássicos como “O Bebê de Rosemary” de Roman Polanski, e “O Iluminado” de Stanley Kubrick do que de filmes como “Anabelle” e “Invocação do Mal” de James Wan, “A bruxa” se foca no desconforto pscológico e na criação de um  ambiente claustrofóbico, que sufoca o espectador com sua noção de que não há escapatória do terrível destino reservado para a família.

Utilizando-se de diálogos tirados diretamente dos relatos e das cartas que pesquisara, Eggers cria uma janela para o pavor da ignorância, e a loucura gerada pelo conceito de pecado. Acreditando estarem amaldiçoados por suas escolhas que os afastaram de sua comunidade, a família interpreta todo e qualquer desvio da palavra sacra como um ato contra Deus. Seja nas crianças que alegam conversar com o bode negro Phillip, ou Caleb e William que desejam Thomasin com olhos pecaminosos, ou mesmo Katherin que falha em amar a filha, A bruxa do título pode perfeitamente ser esta criminalização dos ímpetos humanos.

Metáfora também utilizada por Lars Von Trier em seu filme “Anticristo”, a representação da mulher livre como uma pecadora não é algo novo criado por Eggers. Assim como a protagonista do filme de Trier, o único pecado de Thomasin é desejar os prazeres da vida que lhe são negados. Sua danação começa com uma inocente brincadeira de esconde-esconde enquanto deveria estar cuidando do bebê, e os boatos de Mercy só acontecem pois ela caçoa da irmã mais nova, inventando maneiras de assustá-la. Eggers parece afirmar que o mal não está na natureza humana em si, mas em conferir a ela o status de nefasta e enchê-la de culpa.

Acertando o limiar entre mostrar em excesso e não mostrar o monstro-título do filme, Eggers apresenta uma bruxa inesquecível, onde cada aparição, mesmo que pequena, é intensa o suficiente para atormentá-lo para o resto da vida. Sem apoiar-se em efeitos especiais, “A bruxa” nos faz questionar o quão sobrenatural é a natureza dos acontecimentos que envolvem esta família. Perfeitamente interpretáveis como paranóia e resultado de isolamento e ignorância, os bizarros episódios que culminam no destino sangrento da família nos deixam duvidando do que realmente está acontecendo em cena até o final.

Ao construir a dinâmica familiar e apresentando a estrutura social daquela época, suas condições de vida e a mentalidade destas pessoas, Eggers nos ajuda a não só entender o passado, mas joga uma luz sobre a nossa própria relação com o desconhecido e com a liberdade feminina. A sequencia final, repleta de êxtase e alegria, ganha um tom demoníaco graças a atmosfera do filme, mas representa a libertação da mulher da sociedade que recrimina seu ser. “Você quer uma vida de delícias e prazeres?” Questiona o diabo.

Um balde de água fria para aqueles que esperam sustos para pular da cadeira e cenas chocantes para lhes fazerem fechar os olhos, “A bruxa” é silencioso e comedido, e apesar de suas críticas extremamente positivas – que inclusive concederam a Eggers a direção da refilmagem de Nosferatu – não é um terror a ser adorado por todos. Fortemente criticado como “um filme onde nada realmente acontece”, o conto de terror de Eggers é contundente justamente por gerar discussão. Com um trabalho técnico inegável e uma claustrofóbica e horripilante atmosfera, “A bruxa” eleva o terror, um gênero há muito saturado, ao status de filme arte, como era de costume até meados dos anos 80.

Robert Eggers faz sua estréia no cinema com sua pitoresca visão da humanidade, nos apresentando como frágeis criaturas, facilmente subjugadas pelo desconhecido, obrigadas a nos entregar ao mundo em frente a incapacidade de compreendermos sua magnitude, e na ignorancia de nossa pífia compreensão, demonizamos nossos prazeres, recriminamos nossos desejos e glorificamos a dor e o desespero como penitência por nossa existência. Antes um filme autoral, mas cumprindo com excelência seu papel como um filme de gênero, “A bruxa” nos oferece uma altenativa para um caminho manchado com sangue e sofrimento.

Deixar-se ir.

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Thales de Mendonça tem 25 anos, é escritor e produtor audiovisual em São Paulo. Autor do livro de ficção científica “D3-VA”, trabalha no mercado há seis anos e escreve para o Cidadão Cultura às segundas feiras.

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