*Por Bárbara Rosa

Jaziam lá tantas vozes. Ai, já fiz as contas: dezesseis andares, oito apartamentos e quatro blocos. O edifício era velho, desgastado como porca cega, mas plantei ali uns setecentos por mês. Um ano de contrato assinado, meio ano arrastado e muita falta de experiência.

A melhor opção me veio num terceiro andar que visto do piso térreo contava como segundo. Mas tudo bem, por aquelas terras as coisas parecem funcionar assim. Todos querendo mais céu, até no oceano. O conjunto me dispôs dois quartos, um banheiro e um conjugado não muito prático de cozinha-lavanderia embelezada com luminárias do século vinte – ao menos era o que dizia ali.

Comecei aquele sobe e desce de ladeira. Pois é, vistosa que era a entrada do condomínio, arborizada. Um antro de gatos e gatunos noturnos sorrateiramente escondidos. Descobri nos últimos dias que aplicava grande parte de meu saldo condominial na manutenção da tal ladeira, a qual gentilmente chamava de querida, e não me incomodei. Ganhei coxas, disseram, e hoje não consigo me acostumar a elevadores. Enfim, devido à tamanha distância do asfalto quente e da bela localização estratégica do meu apartamento em quina, mal pude abrir janelas. O vento me intimidava em alguns dias, noutros trazia o gosto do sal e levava minhas cortinas.

Tive noites difíceis ali. Algumas de terror interno, preocupações mundanas e incertezas. Outras de puro medo do meu próprio forjado-lar. Dormia e acordava sempre acompanhada daquelas vozes. O interfone tocava e eu dava pulos. Quem? Num desses dias molhei meus pés ao pular da cama, bem plantada no chão aguacento da má tubulação de décadas. Após o reparo fiz dos pingos remanescentes nas paredes meus companheiros, confidentes. Pedia a eles que não trouxessem a parede do quarto ao lado abaixo mais uma vez, prometendo deixá-los quietos em seu plim-plim desgraçado.

Não demorou muito, vesti meu lar. Ganhei um sofá arranhado de gato e uma bela estante para aparatos eletrônicos da vizinha do sexto andar. Cobri o sofá de vermelho e redesenhei uma sala mais cativa. Colei adesivos no banheiro e na cozinha, troquei a geladeira de cinquenta por uma que terminei de pagar a pouco e até cheguei a pregar o quadro-presente na parede de entrada da sala. Tinha o necessário, mas claro, gastei horrores em cafés virtuais aonde fazia o tipo “’adoro papo” pra ganhar uns descontinhos e poder saciar a comunicação com o mundo do lado de cá sem quebrar tanto o orçamento mensal.

A vizinha do sexto andar (ou quinto, se preferir) era daquelas loiras febris tímidas, cabelos encaracolados a lá Gal e sempre tinha certo desconforto na voz. Vivia a decidir se era isso ou aquilo e não conseguia confiar no próprio julgamento. Beijava garotos, mas preferia as mulheres, um dia constatou. Falava muito bem de política, família comunista que tinha, e sonhava com Fidel sempre-vivo e Cuba libre. Éramos muito diferentes, mas passamos várias noites em conversas íntimas e cigarros tímidos aprendendo a ensinar em tempos sempre pré-vestibulares. Quando se mudou, tive de aprender a não mais pegar o elevador de números pares a não ser quando o ímpar enguiçava – o que não era muito difícil por ali. Engraçado como nessa estória de andares trocávamos ímpar-par in par.

Mal conheci a síndica. Eram estranhas aquelas mulheres, talvez pelo preço barato da cerveja no playground do condomínio. Talvez pela minha não alcançada maturidade naqueles dias. Os homens, fingia não os ver. Com exceção da família religiosa vizinha da esquerda e do estranho rapaz do lado direito que insistia em se mostrar interessado pelos meus cedês. Num certo dia saindo pra aula vespertina da turma intermediária me peguei entre o abraço e as palavras sinceras que o pai da esquerda destinava ao filho da direita, recém-órfão. Cenas dessas aconteciam pouco deste lado do corredor e fazíamos questão de trancar a grade de segurança que nos separava do outro lado nos inícios de noite, já que estava lá por algum motivo e nos confortava a possibilidade de afastar os gritos das famílias do outro lado.

As vozes vinham de todas as direções, dadas as proporções condominiais e os intermináveis apartamentos. Naqueles um ano e meio ouvi muito, sem querer e querendo também, fingindo zelar pela minha própria voz. Volta e meia meus fins de tarde eram acompanhados dos garotos da pelada no playground, os churrascos em fim de semana invadiam meus almoços tardios e nos feriados festivos nunca me sentia só. Sabia de todas as nem-tão-boas novas de meus companheiros condôminos sempre que as mulheres se uniam para a cervejinha da noite e numa dessas descobri que o piromaníaco do último andar não só fugiu facilmente em seu próprio carro como também seu vizinho da direita teria de arcar com o prejuízo.

Enfim me tornei profissional na adequação condominial. Não tarde os interfones velhos foram trocados por novas geringonças com senhas e adequadas ao sinal do telefone fixo. Como este eu não possuía, não mais fui acordada aos pulos. Comecei a receber visitas conhecidas, fazíamos jantares regados à aguardente dos russos enquanto planejávamos um futuro comum na área do vestuário cult e faríamos do quarto inundado nosso quartel general. Pude até receber a sogra, e me disse tímido o companheiro que a mãe esperava algo pior. O irmão quando apareceu fez do colchão sobrando um colo e quase dormiu, eu ali como mãe, até, mas da minha própria casa.

O apartamento me viu de muitas maneiras e viu também em mim as visitas que passaram por ele. Aprendeu a ecoar as faixas repetidas do som velho, acolheu minhas bitucas de cigarros em noites de aventuras e tingiu-me de loira-quase-fatal. Gostava de me pregar peças, o safado. Não só um quarto inundado foi o bastante, mas me levou a cozinha também, minutos antes de um encontro entre amigos: comemos bem, mas não abrimos torneira alguma. Apenas se fez quieto depois que aprendi a alimentá-lo das sujeiras que a pá se recusava a levar dos entre-pisos, ou entre-ouvidos.

Quando decidi me mudar, além do aperto mensal no bolso, o fiz pela conveniência de deixar as vozes. Elas ainda incomodavam, cantavam no pé do ouvido e quando dizem que o som sobe, acredite. Sonhava com outro apartamento mais próximo ao chão e não em frangalhos. Nem bem ao certo sei como não me desviei daquelas esquinas de sempre por mais de um ano, está no sangue o nomadismo herdado da infância.

*Bárbara Rosa é cuiabana, produtora, comunicadora e responsável por abrir portas 
por onde passa.

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