Não bastasse a dificuldade em tirar leite de pedra os meninos do circo Leite de Pedras agora têm que tirar das cinzas o velho mito de fênix. Renascer das cinzas, literalmente. O escritório, biblioteca e centro de inclusão digital, além de abrigo, funcionava em um ônibus velho incendiado de forma criminosa, numa ação nefasta de um grupo de empresas de autoescola que utiliza um espaço público em frente ao Sesc Arsenal de forma totalmente inadequada e irregular.

Foram flagrados após o incêndio que destruiu parte da estrutura que sustenta a lona, roubando as espias que dão sustentação ao mastro principal, os pares de moitões e os cabos de aço, além de um rolo de cordas. Júlio Carcará informa que abriu uma queixa-crime contra os mesmos. Preocupados em não perder a boquinha os caras partiram para a ação violenta num total desrespeito ao circo, à cultura e às regras da boa convivência social dentro dos limites da lei.

Estaremos acompanhando o desdobramento desse caso e afirmamos nossa  solidariedade com a trupe do Leite de Pedras. Eles conseguiram a liberação através da secretaria de Cultura de Cuiabá para instalar o circo ali e aguardam as medidas necessárias da Prefeitura para iniciar os trabalhos. É preciso dizer que a burocracia e a lentidão dos serviços públicos vêm atrasando o processo que se arrasta há pelo menos 9 meses.

Começo a história numa viagem conversando com o mentor  e líder Júlio Carcará do circo Leite de Pedras fazendo essa pequena provocação – gozação linguística, apesar da gravidade do assunto criminoso, tirar Leite de Pedras e renascer das cinzas, brincando com as palavras como quem brinca de fazer arte de forma lúdica, simples, prazerosa e mágica, que são as prerrogativas do próprio circo.

A lona, por si só, como diz o Júlio Carcará, é o outdoor do negócio. Entendi: ele quis dizer que a forma do circo, a lona que repousa na paisagem urbana, ou rural, por si só já é um anúncio ou prenúncio de espetáculo que atrai magicamente as pessoas. Logo imaginamos a cena anunciada: – Respeitável  público!

Júlio rememora  e vamos tecendo os caminhos percorridos pelo projeto Leite de Pedra, que é um circo, mas que é espaço para teatro, tanto de atores quanto de bonecos, é espaço para contação de histórias, é atuante também como espaço de formação ofertando cursos, das técnicas de circo, de clown, arte, bonecos, teatro, enfim, é uma trupe que leva a alma do circo pelas estradas da vida. E vida duramente vivida com as dificuldades inerentes pra quem quer fazer e viver de arte nesse país. Júlio diz que no início acreditava que a itinerância seria uma forma de sustentar o negócio mas percebeu que era uma ilusão: “precisamos de um espaço fixo.”

No ano de 2000, Júlio Carcará e sua trupe, na época a Deise Nuevo, o malabarista Ferdinand e o “Seo” Roseno, que já tinha larga vivência com a arte do circo, iniciavam os trabalhos que segue vivo até os dias de hoje. “Seo” Roseno gerenciava o circo de Ivan Belém e do Toty, amantes da lona e visionários da atividade cultural e da arte como meio de vida. Em princípio o Leite de Pedras instalou-se no bairro Canjica. Ali fincaram a lona até o ano de 2001.

Depois foram para o bairro Lixeira, onde ficaram por volta de cinco anos. Saíram e voltaram. O circo circulava de acordo com as premiações em editais que tinha nos projetos a contrapartida de passar por bairros da capital mato-grossenses e cidades do interior espalhando alegria e conhecimento.  Com um prêmio conquistado na Funarte e com outros editais municipais e estadual ficaram um ano circulando por bairros cuiabanos, 2 meses em cada bairro, no Tijucal, Jardim Glória, Jardim Vitória, Três Barras e CPA.

Foi em 2003 que se tornaram entidade civil organizada, criaram a Associação Leite de Pedras. A partir daí passaram a conseguir recursos através de projetos culturais que impulsionaram a atividade da trupe. Muitas oficinas, apresentações, cursos, festas, peças de teatro, o circo sempre apoiou e estimulou o uso da lona para atividades diversas de caráter multicultural e de caráter formativo. Júlio reclama muito da dificuldade em manter a atividade com mais constância e que dê continuidade às ações. Concordo com ele, as ações educativas e de formação cultural têm muitas dificuldades, eu diria descabidas, de conseguir formas de se sustentar. Alternativas vão sendo criadas, mas é tudo muito precário. Eles têm que desenvolver muitas atividades paralelas para conseguir se sustentar. Vida de artista não é fácil e nem é o glamour que aparenta ser.

A questão das mudanças de políticas culturais públicas a cada novo governo evidenciam a total falta de respeito com as ações de formação, tanto de plateia quanto de novos artistas ou praticantes da arte circense. Esse é um problema crônico que inclusive se repete em outras áreas da gestão pública. E este é o tipo de atividade artística que já teve seu momento de esplendor principalmente nas cidades do interior do Brasil em que o circo fez parte da formação desses lugares, além das periferias das grandes metrópoles. Eu diria que esse modo de fazer o circo é o circo essencial, em sua natureza primária. Hoje em dia os grandes circos estão apelando para autênticos aparatos tecnológicos e técnicas repetidas à exaustão. E o pior, estão colocando o palhaço, talvez a maior magia do circo, copiado do modelo europeu. Júlio trabalha para retomar o palhaço simplório, essencial, que será sempre capaz de produzir encantamento e alegria.

Lembro-me muito bem do picadeiro como templo dos palhaços e domadores, os destemidos trapezistas e a loucura que nos arrebatava a ponto de prender a respiração: O globo da morte era o ápice. A gurizada ficava enlouquecida com aquilo. Para mim aqueles loucos aventureiros com suas motos cruzando as barras do globo da morte de ponta a cabeça produziam sensações indescritíveis. Esses foram os maiores heróis de toda a minha infância.

Carcará diz que sempre sonhou com o circo como abrigo para atividades multimídia. Ele enumera uma série de eventos que já foram realizados sob a lona do Leite de Pedras, o Sarau das Artes Free por três vezes, um festival de rock, peças de teatro, com destaque para “Viver é Raso” de Amauri Tangará, lançamentos de livros, shows musicais, teatro de boneco, foi também cenário para dois filmes e palco de várias oficinas de formação para crianças e jovens carentes, enfim, o sonho permanece vivo.

“Infelizmente vivemos uma crise na arte circense, o circo mediano está deixando a arte circense essencial de lado, minha luta é para recuperar a magia do circo. A alma do circo está na simplicidade”.

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