Por Aline Bei* 

 

a família

estava toda num banco só

alguns ajoelhados

olhando pro altar

com o padre contando as histórias do evangelho.

minha vó

tinha ainda mais cheiro de mate nessas ocasiões de missa, acho que era o vestido de malha fria

em contato múltiplo com a pele de índia e o banco

de madeira,

no fundo uma árvore morta.

 

jesus nasceu – gritaram

 

cantando um salmo alguns de cor

outros seguindo

o livreto e os sinos, um velho de terno tocava o teclado.

jesus era de mármore

com pregos no pé e tinta vermelha, a Dor

sempre enaltecida

e a culpa enorme que sentíamos só por existir.

 

jesus morreu por nós! – o padre repetiu entusiasmado, a missa inteira levantou as mãos.

 

na guerra

tanta gente morreu por outras

e ninguém colocou a imagem dessas pessoas

numa cruz dizendo:

 

– Olha.

 

os rostos

dos que morreram por alguém

é 1 rosto único, uma massa disforme que nem parece um

rosto.

chorei pensando nisso

minha mãe colocou a mão no meu ombro achando que aquilo era emoção do natal. quis dizer pra ela:

 

– você não entende nada.

 

mas não disse

foi quando o padre falou pra gente ir embora com deus.

fomos,

a família grande só naquela parte do ano

reunida na calçada combinando a ceia:

 

eu faço o arroz com uva

passa o pernil já está

pronto, vamos

 

e quando chegamos no carro

o vidro da janela estava

Quebrado,

tinham levado o rádio e muitos

cacos

espalhados pela rua, um cachorro podia até se cortar.

meu pai olhou pros lados procurando testemunha

e com a chave ele foi jogando

os cacos do banco pro chão.

disse:

 

-entrem logo, vai que o ladrão volta.

 

a noite estava escura

como deve ser por dentro uma azeitona.

 

ajudei minha vó a entrar primeiro

pesada como era

com medo ficou ainda mais.

depois entrou minha tia,

minha prima, minha mãe no banco da frente

meu pai motorista

e eu

olhando pro meu pai só nos olhos pelo espelho do retrovisor.

ficamos em silêncio sem rádio e

ninguém quis cantar. como? deus deixa

roubarem a gente

que estava na igreja rezando por ele?

pelo menos as pessoas que estão na igreja deviam ficar protegidas.

 

(anos mais tarde li

num livro

que pessoas dentro da igreja são assassinadas inclusive

padres, na guerra,

e jesus imóvel na cruz porque também ele

já está morto.

e deus? porque deus não tem uma imagem? a maria tem. Santo

espedito tem. jesus tem em várias

idades. deus não, deus ninguém ousa

imaginar)

 

chegamos pra ceia na casa da vó.

tinha uma garagem que parecia um quintal.

meu pai

parou o carro na frente da casa, não na garagem, ali a gente usaria pra fazer a ceia.

pro carro de janela aberta

minha tia pegou um lençol estampa de âncora

e cobriu.

meu pai ficou de vigília

pegou uma cadeira e sentou na garagem só o portão de grades separando o carro dele que apoiou a mão

no queixo

Triste

pelo furto? pelo custo? parecia que

por mais,

pela injustiça no mundo? pelo natal e a sua

melancolia?

então perguntei:

 

-que foi, pai?

 

e ele mudo

o olho molhado

e porque eu não fui embora dali mesmo com a mãe me chamando pra botar a mesa

então ele me deu dois tapas

leves na cabeça

como quem diz você não entende nada.

 

aline-bei

*Aline Bei. De formação, sou atriz pelo Célia Helena 
desde os 19. De comportamento, atuo desde o berço e 
escrevo desde os 9 quando bolei extravagante salvar 
meu pai do buraco com um livro de poesias. O pior é que, 
hoje em dia, eu continuo a mesma menina. Ainda acredito
nos sonhos e no trabalho livre. Sou do amor. Das Letras 
fiz a Pontifícia e da vida fiz os versos, além de 
bons amigos que carrego comigo ladeira a dentro.

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