Por Santiago Santos*

Nada do Gargalo. Cumprimento o Cachorrão, passando pano nas mesas perto da sinuca. Salve, Dog. Tudo certo pra hoje? Desço o corredorzinho, bato pata com o Fabinho na mesa de som e subo no palco. Brunão e Parreira já tão mexendo nos cabos, nos tons, nos pratos. Bato pata com os dois, Brunão me passa um copo de cerva pela metade. Toma aí, brou, tá esquentando.

Abro o case, tiro meu baixo Tagima 4 cordas, plugo o cabo no cubo, ajeito a correia no ombro. Peço o mizão do Parreira na guitarra, afino dela o resto, aumento o grave, Fabinho dá um joinha lá da mesa de som, mando o começo suingado de Drunkship of Lanterns, do Mars Volta, Brunão até dá o repique na caixa pra testar o suporte.

Zero o volume do cubo, mato a breja e desço.

A gente já tocou tanto no Cavernas que nem passa mais som. Fabinho Mestre dos Magos equaliza tudo no primeiro minuto da primeira música. Brunão demora pra ficar contente com a bateria, que vai ficando perigosamente Neil Peartiana, quatro tons, dois surdos, dez pratos. E o Parreira é o cara mais metódico do mundo, ajusta todos os pedais trocentas vezes. Pego outra cerva no bar. Como passei a moto pra frente tô com uma grana e peço Heineken, depois que a galera chega e reveza é só Brahma (melhorou um tiquinho é burguês), mas sou fã de Heineken, tem jeito não. Dois pilas de diferença por casco que me enchem de felicidade.

Cachorrão tá no computador do caixa, escolhendo a playlist da noite. Vibe saudosista, ZZ Top, confesso que tenho uma inveja fodida da barba deles, Cachorrão diz que tem também, quem não tem? Pergunta se é pra colocar alguém pra dentro, fora as minas e Manoel. Falo do cara do jornal, o Rodivaldo, talvez apareça; ponta firme e sempre joga na agenda de eventos. Mas não dá pra liberar os manés de sempre, 10 pilas, tá no mínimo já, pelamor.

Em dia de evento o Cachorrão fecha a entrada principal e deixa só o corredor lateral de portaria. Na calçada é que se reúne a maior parte da clientela. O Cavernas já foi tosco pra cacete mas reformas graduais melhoraram os banheiros, o bar e o calor, uns puta ventiladores na área do palco. Mesmo assim continua um inferno quando enche, afinal, Cuiabá, brisa de cu é rôla. Por isso sempre a calçada apinhada, rodinhas espalhadas pelo meio-fio, do outro lado da rua, na boca dos estacionamentos fechados. Meia-noite é o ponto e a gente começa a tocar pouco depois disso. Nenhum conhecido meu nas rodas ainda. Nada do Gargalo.

Pego o celular. Necas de mensagem também. Dou um golão de djelar amídala e vejo Ariane descendo a rua com Lolita. Ariane, riscada nos braços e pernas, começou a trampar num estúdio de tattoo mês passado. Ela tá agilizando um desconto pra mim, quero fazer o zepelim do Led Zeppelin na batata. A gente se pega de vez em quando, nada sério, ela não quer namoro, nem eu. Lolita é a mina do Brunão. Moram juntos tem mó cara. Ela não tem tattoo nenhuma, cabelo curtinho, veste umas roupas estilosas, laços, sempre branco e preto, um lance pin-up, tanto que faz propaganda pras bandas que rodam camisetas e tal. Queridona.

Oi, Tuím. Oi, meninas. O pessoal já tá todo aí?, Lolita pergunta. Menos o Gargalo, digo, passando a cerva pra Ariane. Vou lá dar um oi pro Brunão, Lolita diz, e vai, e Ariane me abraça, fala que tá com saudade. Lasco um beijo rápido, ela me devolve a cerva e vai atrás da amiga.

Marcola chega, ouço o ronco da moto quando atravessa a Isaac Póvoas. Dá aqueles pipocos de acelerada enquanto estaciona nas vagas cobertas do terreno vizinho. É um cara legal mas convencido bagarai, quando bebe perde a noção. O melhor é encontrar ele ainda na boa. Xaê, mano veio, ele diz, socando minha mão, dando um abraço, o cheiro de cachaça impregnado. O fela da puta fez esquenta em casa. Diz aí, Tuím, cê que manja dos paranauê. Tô querendo comprar um cel novo, não sei se pego LG ou Samsung. Pega o que cê quiser menos iPhone, digo. É um saco colocar música nele. Pô, mas todo mundo elogia. Todo mundo que tem grana e paciência. Não você que baixa tudo no torrent. É só jogar a pasta lá dentro, saca? Pode crer, Tuím. E outra, cê ainda tá mexendo com computador? Meu note deu pau, tá reinicializando sozinho… Ô, Marcola, tenho que dar um pulo lá dentro e falar com o pessoal da banda, depois a gente se tromba, belê?

Nego acha que quem entende de computador arruma tudo na brodagem. Brodagem de cu é rôla. Volto pro bar, dou a ficha da Heineken, Nenê arruma pra mim no copo. Cachorrão tá com cara de tédio, fazendo conta num papelzinho amassado. Bora uma partida ae, Dog? Cê paga, ele diz. Beleza, cobra na próxima cerva.

Arrumamos as bolas. No estouro já mato a 9 e a 5, mas Cachorrão respira essa porra, vira fácil. Checo o celular de vez em quando, filho da puta do Gargalo nada. O povo vai entrando, comprando breja. Cachorrão diz que precisa voltar pro bar, pendura a revanche pra próxima. Chega uma galera que conheci na Federal, comentando a discografia do Black Sabbath. Eu sou da era Ozzy, já uns preferem o Dio. Respeito, mas não troco o Sabotage por nenhum outro.

Buiú abre o sorrisão. E aí, parça! Cê tá em todas! E tá mesmo: Buiú é o típico piolho do rock. Pintou banda, tá lá. Batera dazantiga, já integrou tudo que é projeto. Gosta mais de coisa nacional, em português, fã de Legião, Titãs, os blueseiros de Campo Grande, galera que tá produzindo hoje sem cair no risco fácil de cantar inglês porco. O cara não bebe, nunca bebeu, mas parece mais alegre que o bando de bêbado que costuma escapar dos buracos rock’n’roll abraçado pela rua, desembalado até uma distribuidora pra conseguir o galão de Sangue de Boi e seguir na toada até o vômito roxo começar a lavar parede. Há variantes de todo tipo na paisagem, do trash ao chique, mas uma coisa é certa: álcool na cabeça, com raras exceções buiúzianas. Ele me fala que tá substituindo o batera dos Monotrolas, que foi pra Rondonópolis dar aula no campus da Federal de lá. Vai fechar a noite. Vão mandar Nenhum de Nós no bis, pede pra eu fazer uma canjinha no palco e a gente emenda um Mutantes. Claro, Buiuzera, é nóis.

Lolita tá conversando com duas amigas enquanto Ariane mexe no celular, sentada na mureta do palco. Mando uma mensagem no Whats dela. “Beijo chegando.” Ela olha pra frente rindo, chego colando beiço. Eita, ferro!, diz Parreira, tu é pegador demais, Tuím. Ariane mostra o dedo pra ele. Pra mim mostra uma tattoo nova que fez perto do cotovelo, uma espiral tremulada, louca mesmo, pergunto se tá saindo muita coisa linework, preenchimento parece que tá saindo de moda. Ela diz que não quer falar de trabalho. Ei, Tuím, nada do Gargalo?, pergunta o Brunão, agora arrumando o banco da batera, última coisa do set. Checo o celular de novo. Nada.

Brunão afasta os pratos e desce a mureta. Bora pegar outra breja?, diz. Bora?, pergunto pra Ariane, ela faz que não, quer ficar com a Lolita. Pegamos um copo cada, saímos. Lá fora outra rodinha de conhecidos. Galera do RPG. Eu mais Brunão colamos, perguntam se vamos tocar, Brunão diz que sim se o vocalista der o ar da graça. Eles tão no meio dum papo sobre a nova edição de Dungeons & Dragons, começam a listar os defeitos das regras de combate, e lembro por que saí desse grupo e comecei a jogar com outros malucos, uma campanha de Call of Cthullhu que, sinceramente, a única coisa que não tem é combate, mas é duca.

Brunão me puxa de lado. Encostamos na grade do estacionamento, acendo um cigarro. Aí, Tuím, o Gargalo tá querendo foder a gente. Meia-noite, mano. Meia-noite e o filho da puta nada. Será que o cara não ouviu o esporro no último ensaio? Que merda. Não dá pra ficar carregando desse jeito. Eu sei, digo. Tô puto da cara também. Mas é difícil achar quem alcança os agudos do Bixler-Zavala ou do Geddy Lee no início da carreira. Claro que é, diz Brunão, só por isso a gente continua com ele. Olha, digo, não sei você, mas tô chegando à conclusão de que é melhor achar um vocalista pior mas firmeza do que estressar todo show e ensaio. Tô nessa vibe também, diz ele, até sondei a Lindalva do Ruined Motorcycles pra ver se ela não topa fazer um teste com a gente. Mas avisei que ia checar com vocês antes. Ela ficou empolgadona. Sério?, digo, pensando que na real sempre fui fã da Lindalva. Pô, mano, ela manda um rasgadinho à la Joplin que é do caraio, ein. Poisé, diz ele, e sei lá, me pareceu que ela não tá muito contente com os caras da Ruined. Vai quê, né.

Tentamos ligar pro Gargalo algumas vezes. Toca até cair. Fico olhando pra calçada quebrada, pros carros que sobem a Barão de Melgaço, alguns pisando fundo, outros devagar pra checar quem tá na frente do Cavernas, misturado naquele bolo cada vez maior de pessoas cabeludas vestidas de preto, disparando até a Dom Bosco pra colar em algum pé sujo, churras na casa de alguém, balada pros lados da Beira Rio, ou então subir até os bares de patricinha da Praça Popular, cair de volta na Isaac Póvoas ou na Getúlio Vargas, que são as artérias da noite, os pés nas quebradas da praça Maria Taquara, a cabeça no Choppão e na boemia que se espraia por ali, Lúcius do Caju, Fundo de Quintal, Hookerz, Clube de Esquina e um sem número de bares e botecos que já faliram. O Cavernas é um bastião rebelde e vigoroso, banger mesmo, que começou aqui na Barão mexendo só com metal, com a truezeira em suas diversas variantes, e foi abrindo espaço pra tudo que dialogasse com o rock, até o mais pop, porque se a clientela roda a cerva vende e assim não falta verba pras noites pesadas que o Cachorrão pira.

Eae, molecage, diz Marcola, dando dois tapinhas no ombro de Brunão. Falaí, Marcola, beleza? Melhor agora, com os astros da noite aqui. Continuo fumando meu cigarro, não guento as gracinhas do infeliz. Cada vez mais gente colando, a rua já fechada de carros. Inacreditável como sempre rola uma gurizada de menor com vinho ou vodca de cincão ou corotinho e copo plástico no outro lado da rua. De lei mesmo. Cachorrão não vende pra menor; já veste a camisa de pária em território sertanejo e não precisa de stress com os homi, mas não pode impedir a gurizada de se juntar na rua pra beber e filar o som que vaza.

Paro nessa cerva, três garrafas é meu limite antes do show ou fico lento das ideias e a marcação no baixo vai pras caralhas. Parreira aparece, ficamos os três mais Marcola, que não se manca, galera se segura pra não mandar ele tomar no cu. Meia-noite e meia o Cachorrão vem atrás da gente. Aí, galera. Cês tem que subir agora. Ou vou pular pra segunda banda. Tamo esperando o Gargalo, Dog, diz Parreira. E eu com isso? Cês que marcaram o evento comigo. Responsa, gurizada, tô tratando com moleque? Ele sai e sobra a risada esganiçada do Marcola.

E aí, diz Brunão, visivelmente puto de tomar a comida de rabo. Alguém cobre o Gargalo no vocal? Sem chance, digo, já tentamos no ensaio e fica um lixo. Rola mandar uns covers? Até rola, mas a galera veio pra ver as nossas músicas. Bom, bora lá, diz Parreira. O Gargalo atrasa mas nunca faltou pra valer. Ele deve tá chegando. Deixamos o Marcola rindo e se coçando, entramos e subimos no palco.

Fotografia de Fran Frasetto

Parreira agradece a galera no microfone, Fabinho manda o joinha, Brunão dá 4 baquetadas e abrimos com YYZ do Rush, instrumental de nome pra agregar gente. Dá pra identificar uns dois moleques que reconhecem a música do Guitar Hero, finalmente descobrindo o tesão que é essa música ao vivo. Pessoal se aglomera diante do palco. Ogro, um chegado que sempre cobre os eventos pro Cachorrão, começa a tirar fotos, que sobem agora mesmo pro Facebook e pro Instagram. Maiara e Romena, casal de amigas que tá morando em Porto Alegre, aparece no fundo, dando um oi. Levanto o queixo pra elas. Caralho! Elas conhecem uma galera que organiza festivais independentes em Sampa, e justo no dia que vêm conferir nosso som o Gargalo resolve dar o cano.

Fechamos a música. Palmas. Nenê entrega uma garrafa de água pra cada um. Parreira dá uma enrolada no microfone, diz que nosso vocalista é o Axl Rose cuiabano, rockstar nem aí com horário, mas já tá colando. Chama o Geraldo, aposentado dos palcos que arrisca no vocal de vez em quando, e mandamos um Highway Star no timbre tiozão sofrido, os caras do Deep Purple com a orelha quente, tenho certeza. Mas é o tipo de coisa que, mesmo capenga, agrada. No meio da música vemos Gargalo furando o bloqueio de gente, jaquetinha de couro pregada, corrente na calça, rabo de cavalo. Filho da puta. Ele sobe no palco. Galera aplaude. Arranca o microfone da mão do Geraldo quando troca o verso e começa a mandar um rasgo Ian Gillaniano que cura ressaca. Geraldão, sem graça, faz os dedinhos do Dio pra plateia, sinal de qualquer rockeiro por excelência, e fica ali batendo cabeça. No refrão, pelo menos, Gargalo divide o microfone. Agradece, diz que Geraldo é ídolo, nem olha pra gente. Sabe que tamos fulos até o osso.

Aí, galera, agora a gente vai mandar nosso repertório autoral, diz ele, e essa aqui é a Nowhere Nowhere. Brunão dá as baquetadas e entramos. O filho da puta canta demais, tenho que admitir. O lado bom de fazer um som autoral progressivo é que a gente tira da caverna uns tiozões dazantiga que manjam de cabo a rabo a discografia do Yes, sabem o equipamento que os caras do King Crimson usaram em cada disco, ditam o nome, o mês e o ano de cada single do Pink Floyd, cantam a música que o bando do Jethro Tull cantava no backstage pra dar sorte e são capazes de passar o resto da vida comentando as curiosidades da carreira dos Beatles. São o tipo de pessoa que queremos agradar pelo ouvido crítico e só conseguimos fazendo bem feito.

Foto de Diogo Palomares

Mas quando fechamos a primeira autoral, o Gargalo resolve reviver a noite que lhe rendeu o apelido, com a diferença de que na época ele tinha 15 anos e tocou três músicas no violão no aniversário duma amiga. Hoje a gente tá com um renome legal, quase cinquenta mil curtidas no Face, Soundcloud bombando, dois EPs redondinhos escalando views no YouTube, arquitetando uns contatos pra entrar de cabeça no eixo e rodar o país em festivais. Ele fala pro público que pra compensar o atraso vai matar uma garrafa de breja a cada música. E agora quer a primeira. Nenê, traz a primeira, paixão, ele diz. A galera urra. Se eu tivesse lá embaixo eu urraria também. Olho pro Brunão, olho pro Parreira. Passa nem agulha.

Enquanto Nenê atravessa o bolo de gente com o copão de Brahma, chego perto do Gargalo, tampo o microfone e falo Cê tá louco, mermão? Ele olha pra mim pela primeira vez na noite e diz Eu sei o que eu tô fazendo, Tuím, cuida do teu aí. Pega o copo e vira os 600ml num golote. Os olhos lacrimejam, vermelhos, a garganta estourada que a cerva aqui é trincando o crânio, e fala que tá na hora dum pouco de Hope For The Lost. Baquetadas e o som come solto. Bebe o segundo copo. Galera pira. Wicked Games. O terceiro já não vai num gole só. Na Places You’d Never Go To ele começa a errar umas entradas, para de pular, vai baqueando. Leva um minuto pra beber o quarto. Os refrões da Thinking Out Loud ele deixa a galera cantar no microfone pra recuperar o fôlego. No quinto copo o pessoal bate palma sincronizada enquanto vira devagar. Três litros de cerva em meia hora. O cara acha que é quem? O Volstagg? Volstagg de cu é rôla.

O sexto copo é interrompido por um majestoso golfo de vômito que fica dividido entre o chão e três malucos chapados batendo cabeça bem na frente, e respinga em geral. Vejo Ariane e Lolita limpando os perdigotos do braço, cara de nojo. Fabinho acende a luz. A galera atingida corre pro banheiro, a que não foi atingida começa a fugir do cheiro, uns curiosos tampam o nariz e ficam pra ver o que vai virar desse filho da puta. Claro que Gargalo pula do palco pra correr pro banheiro. Claro que tropeça e cai no próprio vômito. Claro que tenta levantar e a mão escorrega e por um segundo ou dois parece um peixe sufocando na terra. Vai pingando pro banheiro enquanto o povo tira foto ou filma e posta no Snap, no Face, no Twitter, no Insta, no caralho a quatro. Delisgo o cubo e coloco o baixo no tripé. Parreira fica olhando pro corredor, por onde Gargalo acabou de passar e virar no banheiro, gritando pra abrirem espaço. Dá pra ouvir o segundo jorro de vômito e a gritaria lá dentro. Brunão só balança a cabeça. Cabou, tá ligado?, ele diz. Cabou. Cabou. Começa a tirar os pratos e enfiar nos cases. Ajudo ele.

Nenê aparece com um pano e um balde com água. Cachorrão joga Q-Boa no chão e um troço roxo por cima. O cheiro piora com o químico. Nenê passa o pano, juntando a poça, espreme no balde, vira a cabeça pra respirar. Cachorrão chega pro Parreira e começa a falar alguma coisa. Chego perto. Diz que na casa dele não vai mais rolar palhaçada do Gargalo. Parreira diz que ele vai sair da banda, já saiu. Cachorrão diz que já vomitaram ali, mas no final da noite, aí nego já rachou de comprar breja. Agora ninguém bebeu direito ainda, tomá no cu. Calma, Dog, desculpa aí, não vai acontecer mais. Cachorrão volta pro bar, Nenê termina de tirar o grosso, coloca o pano no rodo, passa nos arredores pra limpar os respingos.

Quando já tamos quase prontos, dividindo as coisas da batera pra fazer uma viagem só lá pra fora, com Lolita e Ariane e Manoel, namorado do Parreira que chegou depois, Gargalo sai do banheiro. Com uma puta cara de cu ele olha pra gente, gasta uns três segundos nessa olhada, secando a cara lavada com a manga da camiseta, se vira e vai embora. Falo pro Cachorrão que toda a grana da entrada é dele, pelo menos isso. Trombo com Buiú na porta, digo que o Nenhum de Nós vai ficar pra próxima. Passamos pelos grupelhos, alguns rindo, outros lamentando, a maioria pouco se fodendo, e vamos até o carro do Brunão. Ele empilha tudo no porta-malas, deixo meu baixo no carro do Parreira, mais pra cima na rua. Voltamos pra perto do Brunão, a essa altura sentado no meio-fio. Chega aí, gurizada, bora conversar. Ele pede pra Lolita levar Ariane e Manoel de volta pro Cavernas pra gente trocar ideia numa boa, só a banda.

Aí, manos, diz ele, tirando um baseado do bolso, lambendo a ponta da seda, acendendo, tragando. Pra mim essa foi a gota d’água. Que que cê acha, Parreira? Porra, foi foda mesmo, diz Parreira. Mas não sei se é motivo pra tirar o cara da banda. Duvido que vai fazer uma merda dessa de novo se a gente trocar ideia pra valer com ele. Parreira, eu digo, essa foi pra fechar o boteco. Não é de hoje. O cara não precisa carregar equipamento nenhum, não marca porra nenhuma, não cuida de nada nosso na internet, é só aparecer nos horários que a gente combina. Não tô mais no clima de aturar isso. Tô sem moto, morando longe pra burro do estúdio, carregando baixo no busão pra cima e pra baixo, e o cara tem carro e não dá as caras, não dá satisfação. Quero criar filho não. É meu amigo também, mas deu.

Parreira confere o celular, tragando fundo. Acabei de receber o vídeo dele caindo no vômito, diz ele. Jogaram num grupo aqui. Mas enfim. Quem vai substituir o cara, então? Ou cês querem pular fora da banda também? Não não, diz Brunão, claro que não. A gente chama outro vocal. Ensina as músicas. Ensaia. Continua mandando ver. Mesmo que não cante tanto. Porra, a gente não tem mais idade pra ficar brincando. Essa banda é pra valer. As do colégio eram putaria, até a Big Trip foi, tudo bem, mas cês querem viver disso um dia ou não? Eu quero. Claro que eu quero, diz Parreira. Não preciso repetir, digo, passando o fininho.

Parreira tá terminando publicidade na Federal e se lascando numa agência, o tempo livre que tem é pra banda, já brigou feio com o Manoel várias vezes pra manter compromisso. Brunão dá aula de batera na Bebop e toca sertanejo com outras bandas, praticamente o único jeito de tirar um cascalho decente. Eu trampo de caixa numa farmácia de manipulação e faço uns frilas de edição de vídeo. Ninguém com a bunda pra cima.

Parreira fica animado quando comentamos da Lindalva como possível vocalista. Não demora muito pra gente se decidir. Brunão abre o grupo do Whats da banda, manda uma mensagem pro Gargalo falando que ele tá fora. Parreira vai buscar o pessoal que tá no Cavernas.

Brunão olha pra mim, apagando o baseado, Lolita odeia o cheiro. Porra, cara, imagina, diz ele. A gente planejando morar em Sampa, alugar casa, fazer show onde der, gastar o que não tem pra gravar o álbum. Eu arriscando meu lance com a Lolita, o Parreira com o Manoel. Nunca daria certo com o Gargalo, velho. É o único jeito. Também acho, digo, pensando nessa ideia de mudar de cidade. Acho que o Parreira não aguentaria. Nem o Brunão. Nem eu, sinceramente. A não ser que dê muito certo, que a gente tenha grana pra se virar. Mas no fundo já consigo ver todo mundo se matando no trampo, o que aparecer pela frente, o stress de morar junto e a música ficando de lado. Bom, sei lá, não vou gorar essa fita. Quando o pessoal volta dou um abraço em Brunão e Lolita e pego carona com Parreira, ele mora a duas quadras da minha quitinete na Morada do Ouro. Ariane fica no Cavernas. Digo que qualquer hora dou um pulo no estúdio pra ver ela.

No caminho vamos explicando pro Manoel os motivos da decisão, a viagem errada do Gargalo, por que ele precisa sair da banda. No rádio rola um Frank Zappa de leve. Paramos na conveniência do posto no pé da Mato Grosso, compramos a saideira pra viagem. Pra chegar no meu prédio a gente passa na frente da casa do Parreira, que é esquina com a avenida. E ali vemos o carro do Gargalo. Puta que pariu. Parreira entra na rua seguinte e dá a volta. Gargalo tá sentado na calçada, encostado no portão.

Aí, desculpa, ele diz. Desculpa, viajei na maionese, viajei forte. Parece que ele tava chorando. Aí, Gargalo, diz Parreira, cara, na real, tu tá bêbado, deixa pra conversar amanhã. A gente quer entrar na garagem, tem como cê tirar o carro? Porra, Parreira!, diz Gargalo, eu parei aqui pra falar com vocês. Parreira começa a ficar puto. O Manoel tem prova do CFO amanhã, diz, dá pra você tirar a porra do seu carro da porra da entrada?

Gargalo abre a porta, solta o freio de mão, deixa descer um pouco e puxa. Manoel entra na casa. Parreira estaciona e vem me entregar o baixo. Aí, gente, desculpa mesmo, preciso entrar pra dormir, Manoel já tá pilhado, não quero atrapalhar ele. Vai lá, eu digo, sabendo que o que ele não quer é encarar o Gargalo bêbado. Gargalo, diz Parreira, sem desculpa pra merda que cê fez hoje. Vai dormir que cê ganha mais. Gargalo só balança a cabeça. Quando apagam a luz da sala, ele vira pra mim. Te deixo em casa, diz, entra aí.

A última coisa que eu quero é pegar carona com o cara nem que seja por duas quadras, mas sinto que se recusar ele desmorona. Vamos em silêncio, segunda marcha, até chegar na frente da quitinete. Então, Gargalo, digo. Vou nessa. Cê tá bem pra dirigir até em casa? Claro que tô, ele diz, vomitei tudo. Fui idiota de beber daquele jeito. Que que te deu na cachola?, pergunto. Sei lá, cara, tava me sentindo culpado, quis fazer algo pra alegrar a parada. Burrice.

Outro silêncio chato.

Pô, Gargalo. Não te entendo, mano. Qual o teu problema de chegar na hora nos ensaios, de chegar cedo no dia de show? Que porra de problema que cê tem, que desculpa cê tem? Sai no horário que quer da empresa do teu pai, descola grana pra gasosa, tem carro, não tem preocupação nenhuma. Que merda, velho? A gurizada ralando bonito pra fazer um som decente e cê só mancada atrás de mancada. Pisei na bola, ele diz. Pior que não tenho resposta. Mancada mesmo. Mas vou dar um jeito nisso. Porque curto pra cacete a banda. É tipo a coisa que me alegra, pensar que eu tenho uma banda foda, saca?

Puta que pariu, digo. Que hora pra você ter uma crise de consciência, caralho. Não podia ter tido uma um pouco antes do show? O Cachorrão ficou puto da cara. Ah, foda-se o Dog, diz Gargalo. Ele tá acostumado a lidar com nego muito pior. Dono de bar vê vomito todo dia, porra. O problema foi com a banda, foi melar o show. Porra, Gargalo, como assim? Você gorfou nos três caras que mais tavam pirando no som!, digo. E tô puto falando isso, mas quando lembro do vômito não resisto, a risada vem automática. Gargalo ri também; depois que a coisa passa vai sobrando só o gritante do ridículo de tudo.

Sinto que ele vai falar da escola, de quando a gente comprava Balalaika e misturava com Fanta na piscina da casa do pai dele, e ficava planejando as bandas, as turnês, as músicas dos shows, as ninfetinhas que ia comer no backstage, os equipamentos profissas que iam chegar de graça, as entrevistas, as viagens, rodando pela estrada e compondo música no busão, no avião, nos quartos de hotel, os fãs esperando no aeroporto. O sucesso e a fama. Mas ele não fala nada disso. Manquei, ele diz, manquei demais. Desculpa aí, Tuím. Vou falar com os caras amanhã, pessoalmente. Se não quiserem voltar atrás, tudo bem, vou entender. Mas nem quero pensar nisso. Vai nessa, mano, pode entrar, boa noite. Brigadão.

Saio do carro, pendurando o case nas costas. Tentando controlar a vontade de não voltar atrás. Mas controle de cu é rôla. Me debruço no buraco da janela. Aí, Gargalo, vou conversar com o pessoal pra ver se não rola uma última tentativa. Mas não posso prometer. Cê é vacilão demais. O negócio de Sampa quase aí e cê melando tudo.

Eu sei, diz ele. Valeu, Tuím. Tamo junto, velho. Boa noite.

Ele dirige, devagar. Só lembra de ligar o farol na esquina. Vira na rua que não é caminho pra casa dele.

*Santiago Santos é escritor, tereréficionado, tradutor e jornalista. Mora em Cuiabá. 
Publicou em 2016 o livro Na Eternidade Sempre é Domingo, uma aventura pé na estrada 
carregada da história e da mitologia dos incas, e publica drops literários toda 
semana no www.flashfiction.com.br

 

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