Por quais diabos, pensei, um homem casa-se com uma mulher que apenas viu por retratos? A realeza é bastante bizarra (CRUZ, 2018, p. 194).

O fim que é começo. Ele não. Eles não tinham a noção exata do país em que viviam. As fábulas e o mito de democracia racial caindo por terra. Um histórico acusa o calendário de parcialidade que a reparação histórica busca minimizar.  A implantação de cotas para o serviço público e o ingresso no ensino superior trouxeram mais visibilidade para a realidade sócio-cultural. O respeito à cidadania e políticas públicas para todos têm incomodado a elite branca, racista e homofóbica neste país.

Quando Eliana Alves Cruz traz à tona “O crime do cais do Valongo”, um sopro de luz converge em direção à envergadura literária, contribuição para que aceitemos a máxima de que melhores dias virão. Já de início, nas primeiras páginas se apresenta o conflito que dita a dinâmica da narrativa: “O morto estava envolto em uma colcha sob medida, com uma faca cravada na barriga e com duas partes do corpo decepadas. Era o defunto mais estranho de toda a São Sebastião do Rio de Janeiro” (CRUZ, 2018, p. 9).

As recentes descobertas arqueológicas durante as escavações para a expansão do Veículo Leve sobre os Trilhos (VLT), na região central do Rio de Janeiro, trouxeram consigo a necessidade do resgate da memória relativa ao período da escravidão no Brasil. Sabe-se que mais da metade dos africanos expatriados vieram para cá, boa parte sendo comercializada na cidade maravilhosa. A divisão territorial da cidade, ao longo do regime imperial, era bem característica, afastando os pretos e pobres do convívio com a nobreza.

Um pulgueiro bem próximo aos armazéns, trapiches e tabernas daqueles subúrbios, por vezes recebia quem chegava fugido dos conflitos na Europa e atraído pela presença da Família Real em solo brasileiro, mas não tinha dinheiro para ocupar os lugares nobres da cidade (idem, p. 10).

 

A morte de um branco rico até hoje faz com que entre os suspeitos, a culpa recaia primeiramente sobre pobres e pretos, por uma lógica construída de maneira a colocar em suspeição o que convinha às teorias assombrosas de um Lombroso e seus asseclas que espraiam pelo mundo até hoje: os ideais da frenologia e da antropometria, característicos do direito canônico (velado) em vigor, desde o século XIX.

Protesters, some from Sub-Saharan African nations, shout slogans during a demonstraion against “Slavery in Libya” on November 23, 2017, outside the Libyan embassy in the Moroccan capital Rabat. / AFP PHOTO / FADEL SENNA

Os primeiros suspeitos – seus três pretos – não se achavam fugidos. Estavam em sua hospedaria e, aparentemente, não pareciam estar envolvidos, mas… O intendente suspirou sentindo um cansaço, pois percebeu que a investigação daria trabalho. O fim deste homem parecia-lhe apenas o começo de uma longa história (idem, p. 12).

Vemos que está em curso um desmanche dos avanços conquistados nos últimos anos. A pretensa sociedade igualitária que se desenhava começa a ruir com a falência da educação e saúde, da luz para todos, da abertura para os excluídos do consumo entre outras iguarias oferecidas ultimamente. “Há quem pense que racismo diz respeito somente a ofensas e injúrias, sem perceber que vai muito mais além: consiste em um sistema de opressão que privilegia um grupo racial em detrimento de outro” (RIBEIRO, 2018, p. 72).

O livro de Cruz vai para além da literatura, da realidade opressora, da estética literária que faz do objeto um objeto estético. E corrobora com o pensamento de Djamila Ribeiro quando, entre outras coisas, demonstra que “eles não toleram ver um preto ou uma preta saber alguma coisa que eles não sabem e que não é trabalho de força dos braços” (CRUZ, 2018, p. 23).

Cais do Valongo

O cais. O caos. Onde mora o encantamento. A mãe África reverenciada. Há neste livro um certo louvor. Um apelo à luta pela igualdade de direitos, de oportunidades. E para que consigamos descortinar os privilégios embutidos nas relações afetivas, profissionais, de parentesco. Sobretudo as que trazem o ranço bestificado que traveste qualquer tipo de perseguição ideológica, étnica ou de qualquer natureza. Gosto quando leio que “grande parte dos ricos novos tem um grande amor ao ridículo. Considero cômica, por exemplo, a forma como um personagem (…) faz doações a ordens religiosas para provar sua elevação e mostrar a todos sua generosidade. Qual!” (idem, p. 33).

Conforme o virar das páginas o leitor vai se deparando com o desenrolar do conflito principal. Vai se depurando do que parecia à primeira vista algo de fácil resolução. E assim tem a oportunidade de formular a crença de que a primeira impressão nem sempre é a que fica. Ou ao menos de repensar que aquilo que parecia ser de um jeito pode na verdade ter acontecido de outra forma: “os três escravos estavam bem longe da cena do crime. (…) as primeiras desconfianças sempre recaem sobre os pretos porque quase sempre eles têm muitos motivos para ódios de seus senhores” (idem, p. 39).

Senhoras e senhores, muito tem se falado ultimamente em presunção de inocência. O que é e para quem serve. Há mais, muito mais do que Shakespeare poderia imaginar nesta tragédia que se repete de tempos em tempos. Parece aquela música do Skank que anuncia o que poderia ser um belo bordão. Algo que viesse para o bem de todos e todas, como para a felicidade (quase) que geral da nação:

Eu tô cansado, meu bom, de dar esmola

Essa quota miserável da avareza

Se o país não for pra cada um

Pode estar certo

Não vai ser pra nenhum

(ROSA, Samuel; AMARAL, Chico).

Morei no Rio de Janeiro, no final dos anos 1980 e início da década de 1990. Por mais que tivesse gostado (e foi bom) sempre me senti fora do lugar. Eu não sou daqui. Era como eu pensava. Lendo Eliana Alves Cruz, me encontro em muitas situações. “Eu perambulo São Sebastião do Rio de Janeiro de ponta a ponta e à hora que for. Por que teria medo? Eu faço parte da paisagem dos que provocam medo nas pessoas e não o contrário. Eu ri gostosamente quando me dei conta disso” (idem, p. 77). Imagino o sentimento de apego e amor à terra que recebe a todos, migrantes e imigrantes, e ao mesmo tempo, os discrimina, ou vitimiza. Os subtítulos do livro parecem ser pedaços de poema. Poderiam facilmente construir imagens, como os bons hai-kais.

Brinco de lua

O livro da feiticeira

Feliz dia

Ou ainda:

O noivado

O cortejo invisível

O iníquio

A força dos artigos definidos, demarcação ideológica do traço de invisibilidade social latente. “Nunca, nunca se comerciou tanto preto quanto agora. A cidade cresceu, expandiu-se, o píer do cais do Valongo foi construído e finalmente desativado, mas seguimos entrando por todos os poros desta cidade” (idem, p. 190). Parece hoje. Mas não. Nunca na história deste país.

Quem jura não mente. Quando se vive em uma sociedade plural, com educação farta, com respeito ao próximo, aos que se colocam diferente do que a pretensa necessidade de uniformização de cabeças e corpos e mentes busca, começamos a crer na possibilidade de mudança. A ameaça dessa perda anuncia tempos perigosos que espreitam a soleira de nossas portas. O narrador ao se lembrar do amor pela negra de ganho, Tereza, e da felicidade de ter o produto de sua venda totalmente para si, “quis casar, (…) ela apenas queria ter pela primeira vez em sua vida a sensação de também ser um navio maravilhosamente solto no oceano” (idem, p. 193).

Bernardo Lourenço Viana está morto. Esta história se passa há muito tempo, quando brancos e negros eram separados do convívio. Não gosto de pensar que existem pessoas que gostariam que esses tempos não tivessem passado, ou pior, que voltassem a ser cotidianamente aceitáveis. Ele, esse tempo, não quero ele não!

REFERÊNCIAS

CRUZ, Eliana Alves. O Crime do Cais do Valongo. Rio de Janeiro: Malê, 2018.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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