Por Santiago Santos*

Só o tempo pode confirmar essas coisas, mas a antologia Fractais Tropicais (Sesi-SP, 2018) tem tudo pra se tornar um verdadeiro marco da ficção científica brasileira.

Em escopo, creio se tratar da mais abrangente do gênero, selecionando 30 autores de todas as convencionadas “Ondas” da FCB, excetuando os precursores do início do século (a 1ª se dá entre 1960 e 1980, em torno das Edições GRD de Gumercindo Rocha Dorea; a 2ª entre 1980 e 2000, época prolífica dos zines e do Clube de Leitores de Ficção Científica; a 3ª a partir dos anos 2000, com a popularização da internet).

Em design, o livro foge dos clichês do gênero, que ficou marcado pelas capas algo espalhafatosas das revistas pulp norte-americanas, que podem agradar os fãs mas fazem inúmeros leitores de fora da bolha torcer o nariz. É um catatau de 500 páginas com quase nada de erros de revisão (marca que assola um mercado dominado por edições sem o apuro necessário), com diagramação atraente, minibios espirituosas e uma introdução de respeito.

Antes de esquadrinhar o livro em si, é interessante recapitular a trajetória de Nelson de Oliveira, seu organizador, para situar em que contexto nasce a Fractais. Publicando desde a década de 1990 no universo literário mainstream, Oliveira colecionou prêmios, publicações pelas grandes casas, reconhecimento crítico e, desde essa época, a alcunha de antologista de prestígio (destaque, entre as mais de 10 já organizadas até hoje, pra Geração 90 — foram duas — e Geração Zero Zero).

Em meados dos anos 2000, Oliveira se desdobrou em vários pseudônimos, com destaque pro escritor de ficção científica Luiz Bras, que fez carreira própria. É como Bras que Oliveira vem hasteando a bandeira da FCB, trazendo-a pros holofotes em palestras, oficinas, bate-papos e artigos publicados em veículos diversos (como os jornais Rascunho e Cândido). Isso aliado a uma produção de alto nível, passando por romances (destaque pra rapsódia Distrito Federal), coletâneas, livros ilustrados e infanto-juvenis (Babel Hotel e Ventania Brava foram finalistas do Jabuti em 2010 e 2016).

Sua principal reivindicação é a “libertação” da imposta marginalidade do gênero no país, considerado inferior, ou o que é pior, invisível. Não é uma discussão nova e tampouco exclusiva do Brasil, mas aqui há uma singularidade: enquanto lá fora a ficção científica é um gênero sadio e lucrativo (vide o próprio sucesso das traduções do gênero em solo brasileiro), a produzida aqui é ainda tímida e inexpressiva em visibilidade e vendas. Para tentar alterar o status-quo, Oliveira aponta como exemplo as boas obras do campo, as que realmente se sustentam longe do seu reduto, e como argumento uma verdade incontornável: já vivemos em um mundo de ficção científica, indissociável da tecnologia, e negar isso é negar a realidade.

O surgimento da Fractais Tropicais no fim de 2018 não é mero acidente de percurso. É uma culminação do movimento pelo reconhecimento, pela visibilidade, encabeçado por um agente numa posição única, cujo protagonismo e bagagem conferem peso e credibilidade à sua defesa crítica (importante lembrar que Oliveira não é o único defensor do gênero; há todo um coletivo — cada vez mais robusto — de pessoas lutando pela mesma causa, com diferentes históricos e contribuições). Essa retórica é, não por acaso, destrinchada na introdução da antologia, que carrega ainda o mérito de aclimatar um leitor que não tem intimidade com o gênero e sua miríade de subgêneros.

Os fractais

Os contos selecionados dão mostra convincente da nossa pluralidade de vozes. Das histórias mais tradicionais às mais experimentais e abertas. Do trato criativo com a linguagem à linguagem em sua funcionalidade básica. Do final apoteótico ao final sensível, sublime, anticatártico. Os maiores tropos dão sua cara: o ambiente virtual com avatares, o cenário distópico de terra arrasada, a imortalidade alcançada pela alquimia, a guerra cósmica, a viagem no tempo, os implantes neurais, o upload de consciência. Tamanha é a amplitude que é virtualmente impossível que todos agradem ao leitor, refém de suas próprias preferências. O nível, contudo, se mantém acima da média, com vários destaques.

Em “Metanfetaedro”, Alliah (a mais nova autora da antologia, nascida em 1991) constrói uma realidade paralela geométrica, que ampara a jornada de exploração da protagonista com conceitos matemáticos vertiginosos e obras de referência da pintura moderna. A subversão da trama donzela-resgatada-do-perigo-por-piratas-mais-perigosos-ainda é base do curto e evocativo “Menina bonita bordada de entropia”, de Cirilo Lemos, que tempera o desfecho com um toque fantástico, imbricado na antologia das mais diversas formas.

O fim do nosso planeta no futuro longínquo é retratado de forma irreverente por duas narrativas bem diversas. Escrito numa linguagem vigorosa, o conto “Aníbal”, de Andréa del Fuego, mostra nosso derradeiro espécime como uma cobaia microscópica a ser injetada e cultivada dentro de um organismo alienígena, que se comunica com ele telepaticamente. Já em “Visitante”, de Carlos Orsi, conhecemos o Museu Terra, que preserva nossas memórias, artefatos e ambientes. Sua rotina é interrompida pela chegada de uma guerreira extraviada de um distante conflito espacial, com direito a reconhecíveis subtextos mitológicos. O fascinante é descobrir como reage essa personagem exótica em contato com nossa cultura.

A fertilidade conceitual é o ponto alto de várias narrativas. Em “Galimatar”, Fábio Fernandes postula uma linguagem que se utiliza da culinária, ou melhor, da formatação e do ritmo com que se monta um prato de comida, em uma cidade que guarda as viagens para as estrelas; a sensível abertura que exemplifica essa linguagem é um prato cheio (pun intended). Em “O dia em que Vesúvia descobriu o amor”, Octavio Aragão narra a jornada de uma cidade que, consciente, se ergue e avança rumo a outra cidade, por mais que os habitantes em seu lombo não gostem nem um pouco disso. Roberto de Sousa Causo escreve a história de origem da sua personagem Shiroma em um universo delineado nos mínimos detalhes, do qual temos apenas um vislumbre em “Tempestade solar”, uma cinematográfica missão de assassinato no espaço colonizado pela humanidade.

De formas multifacetadas, temos presente na antologia também o humor. Em “Caro senhor Armagedom”, Fausto Fawcett tece uma caudalosa missiva de cobrança de uma empresa especializada em criar cenários apocalípticos e arregimentar fiéis para sucessivos fins do mundo que nunca acontecem, atividade lucrativa, embora aqui o mote seja um calote. Em “Los cibermonos de Locombia”, de Ronaldo Bressane (um capítulo extraído do seu estupendo romance Mnemomáquina), seguimos num divertidíssimo portuñol selvaje a busca por um agente desaparecido da Divisão dos Não Lineares na Colômbia. Em “As Múltiplas Existências de Áries”, uma divindade despida de seus poderes vive uma vida sofridamente humana, pelas letras de Finisia Fideli. Ivan Carlos Regina talvez seja o exemplo mais agudo da pegada humorística com seus dois pequenos contos aqui selecionados, um sobre um mercado de tamanho planetário — e o que se esconde entre suas prateleiras — e outro sobre as propriedades amorosas de uma espécie alienígena que faz poéticas declarações de amor (alô, Vogons!).

Pela época, poderia se supor que as histórias da 1ª Onda soariam chatas ou ultrapassadas pros mais descompromissados leitores atuais. Ledo engano. Nelas, é notável o vigor narrativo. Em “O elo perdido”, de Jeronymo Monteiro (considerado o pai da ficção científica nacional e o mais velho da antologia, de 1908), um bebê nasce meio símio, meio humano, o que muda drasticamente a vida de seus pais, convencidos pelo médico da família a educá-lo como qualquer outra criança, escolha que se revela inviável. Dinah Silveira de Queiroz cria em “A ficcionista” uma inteligência artificial responsável por aglutinar narrativas que primeiro assustam, depois encantam e por fim aprisionam a humanidade. Particularmente, meu preferido dessa leva é “Chamavam-me de Monstro”, de Fausto Cunha, a história de uma forma muito peculiar de vida alienígena que se instala em nosso planeta e nos conta suas sucessivas transformações, culminando num simbionte cauteloso e compreensivo para com uma espécie que aprendeu a admirar (menos as crianças, com elas não se mete).

Mas o destaque da antologia fica mesmo é com duas narrativas mais recentes.

“A última árvore”, de Luiz Bras, talvez seja a mais bem aparada de todas, onde nenhuma palavra sobra, nenhuma palavra falta. É a história de um rabugento e cego chefão do tráfico em uma favela isolada numa redoma, dividida em territórios disputados por facções. A trama, aparentemente centrada na última árvore preservada num labirinto e um androide que chega ali em partes, se desenrola entre as discussões e altercações estapafúrdias que o chefe tem com seus subalternos.

Já “O molusco e o transatlântico”, de Bráulio Tavares, narra as consequências da missão de um cientista brasileiro em desvendar a telecinese, ou “a técnica de dar um chega pra lá num elétron pela simples força de sua vontade”. Capturado por uma embarcação alienígena no espaço após a explosão da nave de sua equipe, resta ao brasileiro cooperar com uma inteligência que não compreende e pouco se explica, mas dá acesso a um maquinário potencializado que o permite continuar seus experimentos em meio a ambientes incríveis na nave-mundo onde passa a viver aprisionado. O conto é um construto muito bem arquitetado que gera aquele frio na barriga que sentimos ao entrar em contato com o desconhecido. Sensação que a boa ficção científica carrega de sobra.

 

*Santiago Santos é escritor, tradutor e jornalista. Publicou as coletâneas de 
contos Algazarra (2018, Patuá) e Na Eternidade Sempre é Domingo (2016, Carlini & 
Caniato), além de ser um dos autores presentes nesta aqui resenhada 
Fractais Tropicais. Mora em Cuiabá e publica drops de ficção radioativa no 
flashfiction.com.br.

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