Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Recentemente referi-me ao pensamento do Bauman acerca do conceito de modernidade líquida com o intuito de refletir em torno de aspectos contraditórios da contemporaneidade. E nessa seara prolongo aqui a problemática com desdobramentos em torno da saúde física e mental. A hegemonia do capital tem promovido distorções enormes em prol da concentração de poder e renda na mão das elites dirigentes, de maneira irracional. A não distribuição de renda inibe a expansão do consumo, engessa o comércio, encolhe a indústria e consequentemente afeta em todos os níveis o próprio desenvolvimento dos mercados.

Atuo nas áreas de educação e cultura, pontos nevrálgicos de uma visão humanística de mundo. Cortes de verbas nesses dois setores são coisas corriqueiras, independentemente da gestão e ou situação do país. Mas chegamos a um ponto em que o bom senso ficou de há muito para trás. E o que dizer da saúde, então? A elitização dos costumes, a mania de pobre copiar os hábitos dos mais afortunados apenas por terem na boca o discurso de igualdade (quase sempre retórico) contribui para o quadro de horror em que muitos nem se enxergam.

Não me assusto com o fechamento de universidades, com cortes de verbas para pesquisas, na mesma medida em que me apavora a situação da saúde em nosso BRasil. Como professor, costumo dizer aos meus alunos que seria favorável a um verdadeiro pacto com o demônio (entenda-se o capitalismo selvagem) em que se privatizasse quase tudo, desde que se oferecesse ao cidadão comum o direito à saúde, educação, transporte e segurança. Até para que o ir e vir fosse garantido.

O que se vê na área da saúde hoje é criminoso. A classe médica refém (ou cúmplice) da indústria farmacêutica, os planos de saúde como pilares da degeneração salarial da classe trabalhadora e outras aberrações geradas pelo impacto neoliberalizante que nos engole desde a revolução francesa, de 1789. Nos hospitais diagnosticam-se doenças apenas com um rápido piscar de olhos, o que nem sempre dá conta de um diagnóstico preciso, responsável. Augusto Cury diz que o grande mal do século XXI é a Síndrome do Pensamento Acelerado, e não a depressão; ocorre que a imprecisão diagnóstica gera perturbações e desconhecimento de si mesmo, afetados por tarjas vermelhas e pretas que dão coloridos inusitados para desequilíbrios emocionais.

Com o nome de melancolia, durante todo o período medieval, esse distúrbio é discutido de maneira abrangente no livro de Moacyr Scliar, Saturno nos Trópicos, publicação de 2003, pela Companhia das Letras. O gaúcho, que também era médico, explora a trajetória da moléstia do velho mundo para o nosso continente, desde o seu nascimento, o cenário histórico em que se constituiu como doença, pensando essa transição para doenças da atualidade.

Nesta sexta-feira, 04 de agosto de 2017, as sete notas musicais ficaram mais pobres de suas melodias, com o passamento de Luis. Acordei na cidade de Juazeiro, na Bahia, terra de João Gilberto e Ivete Sangalo, com essa notícia que se espalhou rapidamente pelas redes sociais. Ao longo da vida tive a oportunidade de assistir a um show desse paladino dentro de uma das edições do Projeto Pixinguinha, em Cuiabá, se não me engano no ano de 1985, ou 1986, não tenho agora a certeza.

Nessa mesma noite fui ao SESC de Petrolina para assistir ao Virgulados, grupo de poesia e música da cidade de Belo Jardim, agreste de Pernambuco, que se apresentaria nos Jardins de Ana, espaço poético da unidade, grupo esse do qual faz parte David Henrique, poeta que conheci no Circuito de Oralidades em Cuiabá. Logo depois fomos assistir ao show de Sandra de Sá. E eu ali com a voz do Melodia ensombreando minha aura desde aquela manhã. No meu íntimo, algo me dizia que em algum momento do show surgiria uma homenagem ao poeta das cordas e solfejos inigualáveis. Pois dito efeito!

Sandra de Sá

Depois de desfilar um repertório autoral mesclado com pérolas da música brasileira (que ela chamou de sica Preta Brasileira), a show-woman prestou sua homenagem de maneira marcante. Sem dizer um “ai”, sem recorrer à retórica de qualquer espécie, lançou ao público lágrimas e espalhou emoção com alguns gestos e uma bela interpretação de um dos clássicos desse poeta. O espetáculo durou quase duas horas e nunca vi tamanha interação com a plateia, domínio de palco e tanto brilho concentrados em uma única pessoa.

Do alto de seus 61 anos de idade, de uma ginga e malemolência capazes de estremecer as bases da cultura hipócrita que povoa o mass-mídia contemporâneo, Sandra nos brindou, e ao velho Chico, com momentos de ímpar sabedoria, elegância, respeito à diversidade, ao direito de ir e vir de qualquer um. O show teve momentos de profunda reflexão, diversão e alegria.

Falou-se por muito tempo que a depressão diagnosticada hoje por profissionais da área da saúde, ao longo da Idade Média foi identificada com o nome de Melancolia. Scliar nos diz que:

Jean-Etienne Esquirol (1772-1849), discípulo de Pinel e renovador da psiquiatria, dirá que se trata de um termo adequado só para poetas e filósofos que à diferença dos médicos, podem prescindir da exatidão. Proporá a expressão lipemania (do grego: lupe, tristeza, desgosto): situação mórbida caracterizada por uma paixão triste, debilitante, opressiva (SCLIAR, 2003, p.59).

Deduz-se da citação acima que pessoas dotadas de especial sensibilidade para com as artes, o estilo mais simples de ver o mundo, de certa forma podem ser acometidas pela moléstia, mas que também os muito sofisticados, aqueles que não se preparam para momentos difíceis na vida, para as perdas que são inevitáveis com o curso do tempo, também sejam vitimados pelo mal.

Sandra de Sá, ao ressignificar a sigla MPB, explicou esteticamente sua tese ao cantar duas músicas de grandes nomes da discografia brasileira. E nem precisou dizer os nomes dos compositores, apenas situou o primeiro com o epíteto de natural do interior das Alagoas, de origem humilde e o outro como um playboy carioca, ambos com muito suingue, segundo ela, fruto da ginga do negro com certa malemolência indígena, o que fez de nossos ritmos distintos nessa diáspora africana de muitos ritmos. Trata-se de Djavan e Ivan Lins.

Em tempos de cultura de massa aviltante que destrói a cultura nacional em muitos de seus quadrantes em prol da uniformização estética de baixa patente, é de se pensar que tipos de associação se pode fazer para compreender a corrupção de valores que acomete à sociedade em que vivemos. Encerro com mais uma citação de Scliar para que possamos empreender essa reflexão de maneira mais sistemática e cotidiana, senão vejamos: “Os médicos do renascimento (mas nisso Ferrand era uma exceção) prescreviam o coito terapêutico como forma de neutralizar a melancolia amorosa: tratava-se de dar vazão ao excesso de sêmen produzido pelo sangue exposto ao calor da paixão” (SCLIAR, 2003, p. 81).

A indústria cultural não atua isolada, mas de maneira sistêmica. Qualquer semelhança com aspectos inerentes ao consumo desenfreado de qualquer objeto, conceito ou atitude, não é, de maneira alguma, mera coincidência!

SATURNO NOS TRÓPICOS - A MELANCOLIA EUROPÉIA CHEGA AO BRASIL - Moacyr Scliar – 
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

*Luiz Renato de Souza Pinto é ator, poeta, escritor e professor.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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