Por Diego Borges*

Com a sorte ao lado, ela foi seguindo. Com todo o samba da vida, com toda música nela. Levava consigo os olhos úmidos de esperança e o medo da despedida. O que te fazia diferente de tudo era teu jeito simples de tocar o mundo, de abraçar o tempo. Sobre os ombros sentia a falta de ao menos um amor irreparável, que desenhasse um motivo de saudade. Porém nela havia uma certa melancolia que fazia sentido, que a fazia mais forte.

Havia levado consigo para além dos desejos e a coragem de mudar o rumo, um livreto de poemas, marcado na página 12, que dizia: “todos erros são inventados”, e por último: “os pássaros fugirão pra sempre de ti”. Se não há cercas ao redor do peito, por que inventar tantos medos? Pensava ela com um leve sorriso nos lábios. Teu amuleto era o mundo, teus segredos eram de mentira. Queria mesmo olhar para dentro dos outros para ver a si mesma. Pobre mulher, acreditava ainda ao menos uma revolução que seja. Porém revoltos eram seus dedos que rabiscavam em um caderno de couro seus pensamentos mais insanos, em uma de suas frases se podia ler: “Je porte avec moi tous mes démons cachés” (carrego comigo todos meus demônios escondidos). Se era verdade não importa, eram doces teus porquês e teu francês virgem. Ela então fugiu, há quem diga que a viu pelas ruas desgastadas do Porto, servindo cafés e beijos, por que não? Se inventamos o tempo, por que não fazer com que a vida seja melhor? Por isso preferimos os livros. Gostava que a chamassem Su, ou la mujer de los ojos cerrados, pois dizia que os sonhos de dentro são sempre mais reais. Sunrise, Sunshine, Suzana, Su. Tantos apelidos e nenhuma verdade. Tomou pra si a certeza de um dia viver um amor pleno, e sabia que estava mentindo pra si desde o começo. Ia sempre a um café, duas ruas acima da Calle del Príncipe, chamado Ride or Die, passava lá suas tardes lendo Bukowski, escrevendo poemas rotos e ouvindo a conversa dos estrangeiros. Vivia de futuro, se pregava em tua frágil ambição de ganhar pra si o poder de autocontrole. Percorria de bicicleta o caminho ao redor do rio, sempre havia um rio e uma bicicleta, por que ela achava que as bicicletas davam um ar bucólico às lembranças. Por vezes se encostava às árvores para ouvir seus gritos internos, era nesse momento que jogava teu olhar no mais profundo do rio, como se estivesse mergulhada esse tempo todo. Era quando, às vezes, lembrava de sua mãe, dos domingos e dos doces de abóbora. Não gostava dos domingos, queria ter dois filhos, amarelo era sua cor mais sutil. Preferia o pôr do sol, coloria todas suas t-shirts, era amante das estrelas e sempre pedia vinho tinto. Ela achava que as estrelas eram um bom pretexto pra inventar solidões. Uma vez, passou três meses inteiros olhando para o céu. Deixou de contar os domingos, criou um outro relógio pra si. Um dia qualquer cortou suas tranças e inventou uma beleza única, pois não se achava parecida em nada com as mulheres das revistas. Aos poucos ela percebia como tudo é tão volátil, e como a juventude gastava-se com tamanha vontade. De madrugada ela andava pelos becos, voltava sempre sozinha pra casa, por opção. Ela gostava da conquista, mais do que do beijo. Mas gostava muito do calor dos corpos, da descoberta de prazeres mínimos. Bastava uma boa história para que se perdesse nas horas e se entregasse ao universo fantástico de um livro qualquer. Gostava de ler histórias onde fazia sempre parte delas, e na maioria das vezes parecia mesmo que aquele livro fora escrito só pra ela. Su não era mulher de um homem só, de um amor só. Era tanta paixão, que muitas vezes explodia, mas sempre se perdia, como quem junta os pedaços pra se reconstruir outra vez e fugir. Ela sempre acreditou que o que já não temos é mais forte do que se ainda tivéssemos. Parece complicado isso? Acho que talvez ela tenha razão, “mas existem tantas razões, e também existem as não razões”, dizia ela com um sorriso largo na boca como quem acabava de contar uma anedota. Mas ela estava falando das feridas dos homens, e quando se lembrava delas, às vezes chorava. Gostava de ir ao cinema para chorar. Chorava pra se lavar de dentro pra fora. Ela era como uma poesia, bastava juntar os pontos pra senti-la. La Mujer de Los Ojos Cerrados, foi até hoje a pessoa mais inexplicável com quem eu cruzei um dia, numa esquina de Madrid. Foi um encontro fugaz, cerca de alguns minutos, que para mim pareceram anos, e aqueles olhos ainda tinham tanto pra me contar. Mas seguimos, eu o meu caminho e ela o dela sempre levando consigo toda a sorte do mundo..

*Diego Borges é ator, produtor e diretor, gosta de lasanha e viajar. 

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