Por Tiago D. Oliveira

[Um olhar sobre o livro de contos, O mar não sofre coisa morta, do Leonardo Paiva.]

Sentir as palavras e permitir que a leitura em seu reverso amplie a nossa consciência sobre as imposições dos dias. Deixar que o livro leia em nossos silêncios as intermitências que definem a natureza do homem neste plano de existência. Entender o que resta de nós quando resistimos a nós mesmo e assim, fazer da impotência, uma oportunidade, ainda que em descompasso, de transpor a imagem do Sísifo a nos espreitar.

o-mar-nao-sofre-coisa-mortaEm O mar não sofre coisa morta, que saiu pela Editora Moinhos, em 2016, o mineiro Leonardo Paiva escreve contos como quem costura uma meia furada numa noite de frio. A necessidade, diante de uma narrativa crua, se apresenta sob temas que ameaçam engolir o sentido da existência. Contar a violência, um crivo que pode limitar o autor em tentativas frágeis da palavra. O que não acontece nos nove contos destilados friamente em seu manejo, quando Leonardo desenvolve tramas verossímeis, alertas ao suspenso que implica ao leitor o choque imediato, mas que retornam para o comum quando apontam para o acostumar dessas notícias de jornal. Aqui a violência se dá em seu maior alcance, ao tomar a passividade, a aceitação.

No primeiro conto, Lourdes está entre o que foi e o que poderia ser. A morte de Antônio serve para trazer à tona alguns antigos sentimentos e constatações que havia sentido há tempos, para então, tornar a esquecer novamente. Lourdes é a vida sem luta, o acatamento, a soma de inúmeros fragmentos de posturas sociais que são cultuadas numa atmosfera em que o cego tateia o interruptor da lâmpada. A sexualidade de Antônio é a representação da liberdade negada a Lourdes, seja pelas escolhas comuns, pelo encadeamento das padronizações sociais, pelas imposições explícitas e implícitas. De ritmo próprio, a narrativa apresenta uma ordem peculiar na exposição do discurso direto, como se quisesse provocar a oralidade, a aproximação ao que, por representação, também é silenciada, a vida cerceada pela própria vida.   

Em Véspera de páscoa, o silêncio dá lugar à denúncia de algo que novamente aparece – o comum – a aceitação, e assim, a alegoria trazida pelo conto diz e ao mesmo tempo encobre, sob a própria vida, um além morte e continua. O estupro coletivo é um tema também recorrente nas notícias atuais, mas que como em muitas outras desgraças, cai no esquecimento ou pior, na permissividade de uma sociedade que padece em terreno obscuro. Nada cabe neste momento, nem observações, tão pouco julgamentos sobre as mulheres que tiveram seus corpos e suas almas usurpadas para serem reduzidas a um sapato velho ao final do dia.

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Leonardo Paiva

No conto O ciúme, Leonardo traz também uma conotação sexual; desta vez o silêncio simula a ação e quebra de linearidade, dá asas à imaginação e transfigura o olhar em que o narrador direciona o leitor: sinta/apreenda. Um transpassar paulatino deste olhar é vencido pela aceitação, em palavras findas, para que no retorno deste silêncio seja contido o fogo de um ciúme traiçoeiro que faz o seu lance, e mesmo que as palavras ressurjam, ainda há as raízes deste silêncio.

Em Afogados, os sentimentos são regidos por um silêncio que insinua além dos costumes de uma amizade, sob a cultura de uma comunidade do interior, um afeto que quer crescer em outra direção. O desejo homo-afetivo acontece a partir de insinuações que apenas sugerem ao leitor esta possibilidade.  A metáfora da poeira nos olhos no final do conto é uma poesia maravilhosa que traz a beleza e o brilho ainda escondidos nestes tempos. Capta a essência natural daquela relação muda e híbrida que insinua mas não realiza.

O mar não sofre coisa morta traz a dor obrigada pelo afeto a suportar o peso do mundo. Um afeto maculado pela obrigação de ter que cuidar, doar, perder, achar. Neste conto o autor retrata com maestria a vida que empurra para todos os lados, pouco a pouco, os sentidos românticos que um dia foram somados. E no findar, quando a morte chega, ainda há outras mortes a viver no que ficou. Já não se sabe se há algum retorno possível, o silêncio é tudo o que restou.

No conto O cavalo, a figura de um menino cego amplifica os sentidos dando ao conto um ponto de beleza e pureza que existe e em meio ao caos é preservado. A relação entre o terror e o não ver contribui para que a realidade seja refletida com a destreza de um jogador de xadrez problematizando assuntos muito atuais. Uma criança cega sente duplamente, pelo corpo e pela alma, ainda virgem da viagem da vida contida em um silêncio cercado de dor, violência e medo, que mesmo assim não conseguem macular a beleza/força que o cavalo/menino pode representar diante da falta de esperança, da negação, do desamor.

Os contos são ásperos e alimentam uma contínua sensação de que o que foi lido não é resguardado por inteiro em nosso entendimento, há inúmeras vozes escorrendo por entre os nossos dedos. Os desfechos que se desvanecem quando respirados, transpirados, excretados, sob a atmosfera de reencontro com a realidade, são recortes exatos dos dias, mas que automaticamente perdem a autonomia de final, por exatamente não atenderem a um fim – tais vidas saíram do papel e ainda continuam a padecer sob vários silêncios que aprisiona, oprime, mata.

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Ricardo Piglia

O escritor argentino Ricardo Piglia, em Teses sobre o conto, afirma que o conto sempre traz duas histórias. Em primeiro plano a história 1 e em segundo, em segredo, a história 2. Pensar depois sobre o que é tecido nas entrelinhas é uma consequência da leitura de um texto bem construído. Creio que a necessidade de retirar o véu da explicação sobre o texto é uma prática que acaba por dizer mais do que se imagina. O contar em Leonardo resguarda lacunas hipotéticas que agraciam a leitura.

O Giorgio Agamben, em “Defesa de Kafka contra os seus intérpretes”, afirma: Aquilo que não podia ser explicado está perfeitamente contido naquilo que não explica mais nada. Exaurir as possibilidades de um texto composto com tamanho cuidado é uma experiência duradoura. Quanto mais o tempo passa, mais lacunas são fechadas/abertas – eis aqui a importância da percepção dos silêncios. Observar os contos de Leonardo Paiva entendendo o silêncio como uma saída neste emaranhado de vozes que o livro traz, neste imenso mar, é permitir que a ficção contribua para que lidemos com os nossos próprios silêncios quando comparados a outros carregados de violência e dor, extremados pelo poder da palavra. O Mar não sofre coisa morta é uma viagem sobre o caminho que é comum a todos, diretamente ou não. Digerir o vazio ao encontrar um outro mar azul é uma forma de lidar com os sobejos que a vida nos impõe.

*Tiago D. Oliveira, de Salvador-BA, professor e pesquisador, estudou letras na 
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Nova de Lisboa (UNL). 
Tem poemas publicados em blogs, portais, revistas e jornais especializados 
no Brasil e em Portugal. Publicou o livro de poesias, Distraído, em 2014 
e um novo trabalho, Debaixo do vazio, em 2016. Acesse seu blog, aqui. 

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