Antes de um produto num mercado lucrativo, uma diversão para o público e antes mesmo de uma representação cultural histórica, o filme possui em primeira instância a qualidade de sonho e desafio para o diretor, roteirista  – ou em muitos casos os dois – que o concebe. Antes mesmo da pré produção, dos dias de filmagem e discussões com a produtora, o filme é uma ideia que se debate na mente de seu autor. Assim como o vinho, idéias curtidas na mente por longos anos geram trabalhos de grande esplendor, quando conservado nos barris certos.

Vinte cinco anos fermentando na cabeça de Martin Scorsese, um dos últimos grandes diretores da geração Baby Boomer Norte-americana – e um dos últimos grandes bons barris produzidos no cinema dos anos 70 que ainda estão em atividade –  “Silêncio”, filme baseado na obra de mesmo nome do escritor japonês Endô Shusaku, finalmente ganha vida e desabrocha no trabalho mais surpreendente da carreira do diretor.

Na trama, dois padres jesuítas portugueses recebem a notícia de que seu mentor enviado ao Japão para catequização de novos fiéis, o Padre Ferreira (Liam Neeson), renunciara Deus em público. Acreditando ser uma mentira do governo japonês para desmotivar as incursões religiosas no país, Padre Garupe e Padre Rodrigues, Adam Driver e Andrew Garfield respectivamente, embarcam em uma viagem ao Japão, onde terão sua fé e sua resistência testadas até as últimas consequências.

Criado entre a cultura extremamente católica dos imigrantes italianos dos Estados Unidos, Scorsese crescera com uma forte noção de fé e sempre digladiara internamente com os conceitos divinos apresentados sobre o homem e sua natureza. Presente em vários de seus trabalhos, como em “A Última Tentação de Cristo” e “Kundun”, a crença religiosa e a necessidade humana de ligar-se com algo além da sua existência não é terra inexplorada pelo diretor. Sua hesitação em recriar o livro, segundo ele, era uma dificuldade pessoal em encontrar sua voz em uma história diversas vezes recontada no cinema, uma dificuldade em entender as motivações e problemas destes personagens, aos seus olhos, extremamente intensos em suas lamentações.

Fã confesso do trabalho dos diretores japoneses Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa, o diretor evoca suas referências nas composições e como um bom observador, emprega o ritmo oriental de suspense e atmosfera para ditar o caminhar da história. As cenas montadas pelo cinematógrafo Rodrigo Prieto pedem calma para serem digeridas e carregam em seus elementos um simbolismo imagético pouco presente no cinema atual. Scorsese entrega um filme atemporal, que estuda os limites das crenças humanas de maneira sensível.

Nas mãos do diretor, Andrew Garfield se transforma em Rodrigues, e sua descida na ladeira do sofrimento é genuína, e mesmo aqueles sem crenças religiosas –  como eu  – conseguem entender a luta do homem para defender sua verdade. Adam Driver, mesmo com menos tempo em cena, entrega uma atuação apaixonada e seu Garupe é fiel e verdadeiro. Apenas dois exemplos de um elenco que conta com grandes nomes do cinema japonês que merecem tantos elogios quanto seus parceiros ocidentais. Asano TadanobuOgata Issei e Tsukamoto Shin’ya só para citar alguns.

Utilizando Taiwan emprestada para criar sua visão do Japão, Martin Scorsese explora os ambientes abertos em suas sequências de suspense, e consegue sufocar o espectador mesmo em planícies e montanhas sob o céu azul. É justamente nestes momentos onde os personagens se encontram cercados pela natureza que parecem também estar expostos à todos os perigos do mundo. Expostos à possibilidade de serem capturados pelas autoridades, encontrados por uma vila vizinha, delatados aos carrascos das redondezas e principalmente, expostos aos olhares e julgamentos de Deus. Em certo momento, enquanto conversam escondidos entre as extensas folhagens da floresta, a câmera de Scorsese levita por sobre os personagens, como um ser celestial a bisbilhotar a Odisseia do sofrimento humano. A presença opressora do olhar divino se faz presente durante toda a jornada de Rodrigues.

Em recortes que enaltecem a linguagem corporal e uma trilha sonora que favorece o silêncio e a música dos sons naturais, “Silêncio” se utiliza de toda a linguagem cinematográfica para dialogar com seu espectador. Entre as demonstrações de devoção dos camponeses curvados, as poses austeras dos padres que carregam a palavra divina ou mesmo no corpo do Regente japonês que parece murchar em frente as câmeras, as imagens criadas pelo diretor estão constantemente estimulando o espectador a não só participar, mas devotar-se à qualidade de navegar por emoções que o cinema possui. Resultado de uma vida de aprendizado, poucos exercícios cinematográficos atuais tem seu som, imagem, texto e forma trabalhando tão bem à favor da emoção.

Com lançamento em Março pela Imagem Filmes em apenas dez salas na cidade de São Paulo, ficando em cartaz pouco mais de uma semana apenas, e com um orçamento de 40 milhões de dólares – 19% do orçamento de grandes produções que falharam como Esquadrão Suicida – o filme passara quase despercebido pelo grande circuito e ganhara um burburinho apenas entre o nicho dos festivais e premiações. Concorrendo a apenas um prêmio no Oscar – o de melhor fotografia – a recepção morna do filme expressa para o diretor “A noção de que o cinema no qual eu crescera e o qual eu faço, está morto”. (para ler a entrevista completa em inglês clique aqui). Em sintonia com a declaração de Steven Spielberg de que a indústria do cinema está prestes a implodir graças aos blockbusters, a afirmativa do diretor ajuda a reforçar a ideia de que “Silêncio” é também um ode aos grandes filmes de personagem que ajudaram a construir sua carreira.

Seja por sua extensa duração – o filme tem 2 horas e 47 minutos – ou pelo tema difícil e complexo, que recria a jornada de cristo na jornada diária do homem com uma convicção, o filme pode à princípio assustar os desavisados, mas merece não só sua total atenção como se faz essencial para relembrar as extensões das capacidades do fazer cinema, e daqueles que se dispõem a fazê-lo. Uma vez caladas as vozes destes diretores – ainda preocupados em cultivar a semente desta arte agora secular – não restará nada senão o silêncio oco que sucedem as explosões dos blockbusters.

Comentário

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here