Já tem um tempo que tenho pensado em escrever sobre os meus próprios traumas, medos, inseguranças, minhas experiências. Acredito que é através de relatos pessoais que podemos ter uma dimensão de como as construções das relações sociais acontecem, e que através deste falar, podemos transformar aquilo que não pode mais ocupar espaço em nossas vidas. Este é o meu sobre ser mulher.

Essa história começa com uma moça sonhadora do alto dos seus 21 anos. Na verdade, a história começa bem antes, quando essa moça era apenas uma menina, que viu o seu corpo se transformar, que sentiu no expandir da própria pele as pressões que as mulheres sofrem desde o momento em que nascem.

Para ser mulher era preciso se cuidar, eles diziam. Era preciso ter um comportamento de “menina”, seja lá o que isso significa. Eu muito moleca, sapeca, gostava de brincar, correr, pular, me fantasiar. Era desinibida quanto ao meu corpo. Até que de uma menina de oito anos espichei para uma adolescente de 14.

Foi aí que eu percebi que não me enquadrava nos padrões. Queria me divertir, beber, sair, conversar, namorar. Mas eu não era o padrão. Eu tinha um óculos quase fundo de garrafa, o cabelo volumoso, sem corte, as bochechas cheias preenchendo o rosto infantil, os dentes tortos. Era considerada “gordinha”, “fofinha”, “cheinha”, todos os inhas possíveis que usam sutilmente e delicadamente para te avisar que ei garota, ninguém vai te querer assim, cheia de gordurinhas (se toca né).

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Com 15 anos eu desenvolvi bulimia e algo bem próximo de uma anorexia alcoólica. Eu gostava de comer, mas me sentia culpada. Me culpava por que aquele pão, bolo, bolacha, arroz, feijão me deixariam fora do padrão, fora da fôrma (sentimento de culpa que confesso me acompanha até hoje). E da culpa vinham as lágrimas e o desespero. Comecei a enfiar o dedo na garganta. No começo eu me recriminava, depois percebi que emagrecia. Quando emagreci comecei a trocar a comida por álcool. Lembro de uma semana inteira em que dizia aos meus pais que tinha almoçado na escola e me alimentei apenas de leite. E lembro de quando coloquei pra fora um pedaço intacto da torta do natal. Ou ficava sem comer para beber cerveja. Bizarro.

E quando emagreci comecei a me sentir bonita, desejada, com autoestima, enfim era uma ‘mulher’. Deu certo, eu pensava. Até que meu pai descobriu e me repreendeu. Senti repulsa por mim mesma, por saber que me entregava a algo que criticava antes. Decidi que ia parar e parei. Não lembro direito como foi, se tive recaídas ou não, mas desta fase desenvolvi todos os meus problemas de estômago: gastrite, refluxo, hérnia de hiato. Hoje, uma jovem de 26 anos, com um estômago de idosa porque uma adolescente há mais de 10 anos queria desesperadamente ser desejada e amada.

A menina que virou adolescente chegou então à faculdade de jornalismo.

Antes de me formar consegui um emprego como repórter de política de um jornal impresso. Precisava aprender. Foi a partir daí que mudei meu modo de vestir. Depois de alguns episódios com olhares e insinuações de homens e até de mulheres, deixei de usar vestidos mais curtos. Se optava por vestidos ou saias, eles eram longos. Com 21 anos já podia enxergar o machismo nas minhas relações profissionais. E assusta até hoje me perceber vivenciando situações sexistas; é uma questão silenciosa que está sempre ali, presente. Ela consegue? Ela dá conta? Ela é capaz?

Foto: REUTERS/Ivan Alvarado
Foto: REUTERS/Ivan Alvarado

Enquanto me descobria na minha vida profissional, eu me apaixonei. Ele era nove anos mais velho que eu, inteligente, e tudo aquilo que eu projetava como ideal para uma relação. Eu peso tudo o que vivi. E mesmo que carregue lembranças maravilhosas deste relacionamento, tenho convicção de dizer: eu vivi um relacionamento abusivo. Só hoje percebo a dimensão disso e das marcas que levarei comigo, algumas tão profundas que parecem nebular todo um futuro que eu imagine.

Eu sentia que existia algo errado por inúmeros motivos, mas todos eram desacreditados por ele quando eu o confrontava. Eu não sabia exatamente o quê, mas tinha certeza de que algo estava fora do lugar. Quando tentava um diálogo sobre essas inseguranças, ele fazia com que eu me sentisse louca. Sem lucidez. Acredito que toda mulher escuta isso em algum ponto da sua vida: “você está louca”.

Eu, dentro do meu quarto escuro, no fundo do meu ser, ainda me sentia como aquela menina “gordinha” e era constantemente tratada assim pelo meu então namorado. E isso acabava comigo. Por que antes dele, eu me sentia plena, linda, em uma das minhas melhores fases, me sentia desejada, e estava em busca de uma realização com mil planos mirabolantes para o futuro. Só que eu estava ali: olhando para o espelho quebrado e fragmentado de mim mesma. E tudo o que eu via era uma imagem feia. Isso foi alimentando a minha insegurança, e aquele monstro que vivia dentro de mim, que era eu mesma.

Muita coisa deu errado ali, naquele espaço de tempo. Outras deram certo. A vida não é 8 ou 80 afinal. Mas o essencial estava quebrado: eu, minha autoestima, minha visão de mim mesma, meu SER MULHER. Esse espelho que eu havia juntado arduamente durante tantos anos para recompor minha autoestima de menina gordinha inadequada bulímica até a mulher independente e segura de si, estava quebrado. Novamente quebrado. E minha noção de mim mesma se dissipava nestes fragmentos de vidro que me cortavam fundo.

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Fui sentindo cada vez mais a distância, a frieza, a relação se esvaindo para além do meu controle. Mas era tudo coisa da minha cabeça, ele insistia. E eu não conseguia enxergar a verdade, ou aceitá-la, pois eu a sentia. Um dia descobri todas as mentiras, traições e tantos outros problemas que vivemos juntos e tentamos (pelo menos eu tentei) verdadeiramente consertar. Eu perdi o controle de tudo. Daqueles 63, 64 kgs que eu tinha quando começamos a namorar (no final eu já havia desistido de me pesar) a balança batia a casa dos 80. Infelizmente, pensamentos como “que bom que você tem ele pra te amar por que olha como você é” passaram recorrentemente pela minha cabeça.

E eu aceitei como se fosse amor o que me davam. Hoje eu sei que isso não é amor. Hoje eu sei. Essa história é igual a de tantas outras mulheres que tiveram suas autoestimas reduzidas a nada, que foram violentadas silenciosamente no dia a dia. Violências que não são apenas físicas, mas mentais, violências da alma, que nos impossibilitam a conseguir pensar em um futuro, em outra possibilidade que não aquela.

É extremamente difícil sair desse buraco negro que é um relacionamento abusivo. Porque sofremos abusos durante toda a vida: não somos mulheres suficientes. Para ser mulher você tem que seguir uma série de receitas. Segue a minha lista (vocês podem sugerir mais):

Você tem que fazer a unha, depilar o buço, as axilas, as pernas inteiras, a bunda, a FAIXA da bunda (até hoje não sei o que é isso), a virilha, o cu, o nariz, as orelhas, as sobrancelhas. Você tem que usar salto alto, passar maquiagem todos os dias e isso inclui corretivo, base, pó, blush, rímel, sombra, batom. Você tem que usar calça 36 para causar inveja nazinimiga, e 37 para conseguir os melhores sapatos na promoção. E sem falar dos procedimentos estéticos e intervenções cirúrgicas: bota peito, tira barriga, implanta bunda, puxa a pele, estica os olhos. Tem que fazer um exercício para não ser flácida (usa uma cinta pra modelar teu corpo disforme), tem que tingir os seus cabelos e fazer escova, comprar vestido bandage e ir para balada desfilar tudo isso mas SEM BEBER. Porque é feio. É feio mulher beber, fumar cigarro, falar palavrão. Você tem que ser meiga, fofa, querida, educada, e lembre-se: fale sempre baixo.

E isso te consome. Consome sua razão. Você acredita verdadeiramente que se não fizer nada disso você não será digna de AMOR. Ninguém vai te amar assim, ninguém vai te querer assim. Você não quer ser sozinha e virar a velha louca dos gatos, né?

Eu cansei desses padrões.

Eu consegui sair desse relacionamento abusivo. Ainda me dói, como no dia que fui ver uma apresentação cover de Tim Maia e chorei porque me lembrou dos dias bonitos que tive ao lado dele. Mas tem muitas mulheres que não sabem mais de onde encontrar forças para sair, que tem vergonha de contar os abusos que sofrem, que estão silenciadas sem encontrar suas vozes.

Cris Faga/Fox Press Photo/Estadão Conteúdo
Cris Faga/Fox Press Photo/Estadão Conteúdo

E se você sentir que existe algo errado, escute, é a sua intuição. É a sua voz interior falando com você. Essa é a voz que nos move quando sabemos que estamos em uma situação de perigo, mesmo que nossos olhos não enxerguem o real perigo. Hoje, consciente de todas as mentiras e traições, sigo tentando estancar minhas cicatrizes enquanto me protejo para não ser bombardeada pelo mundo que impõe todo esse peso sob os nossos úteros.

Eu não quero ser capa de revista, eu não quero entrar pro BBB, eu não quero fazer um plano de academia, eu não quero me limitar aos padrões que vendem nas redes sociais. Eu quero ser eu mesma, seja lá o que isso signifique. Não acho que eu vá descobrir tão cedo.

Antes dessa relação eu dizia que sabia o que não queria. Hoje sei o que eu quero e o que eu não quero (mas também sei o quanto é fácil voltar para aquele quarto escuro ou para um buraco fundo, então digo força, escutem suas vozes, se amem, se protejam, sejam vocês as protagonistas de suas próprias vidas, não deixem que te silenciem, se coloquem em primeiro lugar, ninguém mais pode fazer isso por você).

E eu definitivamente quero ser cada vez mais mulher naquilo que acredito que devo ser: mulher que acolhe outras mulheres, mulher que acolhe qualquer ser humano, mulher que acolhe animais, mulher que acolhe a natureza. Mulher que colhe suas dores e canta sobre os seus ossos. Mulher que renasce para parir o sentido do Universo. Ser. Mulher.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

3 Comentários

  1. ave maria que pancada na nuca…sinceramente eu tenho a convicção que enquanto as relações descambarem para o famoso núcleo familiar, desses de salto alto e mulheres machistas treinando machinhos esburacados e fins de semana na igreja cantando versos ao bom deus e papai trabalhando na firma e comendo a secretária, as mulheres e nós seres humanos nos foderemos com esse tipo de angústia e opressão. viva liberdade total!!!!!!

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