Política literária

 

O poeta municipal

Discute com o poeta estadual

Qual deles é capaz de bater o poeta federal

 

Enquanto isso o poeta federal

Tira ouro do nariz

(ANDRADE, 1930)

Almada Negreiros 123

Não conheço escritor que não tenha prática de leitura; mas acredito que existam. Há de tudo neste mundo. E não é porque o cidadão gosta de livros, de poesia, que isso seja garantia de civilidade. Há poesia em tudo o que transpira, inspira, suspira. E não falo aqui de inspiração, fobia, orquestração. Divanize Carbonieri é poeta, ou poetisa, se assim preferirem, eu particularmente prefiro poeta, até porque

O termo poetisa passou a ser contestado por ter sido atribuído a ele um significado pejorativo, cuja carga semântica denotava certa diminuição, inferiorização da literatura produzida pelas mulheres, que durante muito tempo permaneceram à margem de um padrão que priorizava o ponto de vista masculino em qualquer tipo de produção intelectual. Sendo assim, muito antes das questões evidenciadas pelas teorias feministas de gênero ganharem espaço, algumas escritoras apropriaram-se do termo poeta para intitularem-se, compartilhando com os homens a designação desse ofício.

Em se tratando da musa e que no caso é “diva”, creio que ela também deva optar por essa referência, mas não importa. Quero falar de entraves e bugigangas, publicações que marcam seu voo solo em termos ficcionais (sim, para mim poesia é ficção), atestadas por editais públicos de financiamento, quer sejam o Prêmio Mato Grosso de Literatura (Entraves) quer o Edital de Fomento do Município de Cuiabá (Grande Depósito de Bugigangas). O que as duas obras têm em comum? Entre outras coisas, a assinatura de Flávia Helena que no primeiro deixa palavras escorridas pela orelha esquerda e no segundo assina o texto de apresentação, sem o cochicho trazido ao pé da orelha, apêndice de Van Gogh.

O poema que dá título ao livro (Entraves) possui dezoito versos em uma única estrofe e apresenta um universo de erudição que afasta do prazer inicial um leitor não acostumado a hermetismos literários. Vejo como ponto de tensão das ações desencadeadas a força nuclear e substantiva dos vocábulos liquidificador / tendão /coluna /interruptor /hérnia /máquina /hemorragia /músculo /gargalo /licor /lágrima /quina /talho /falha /trastes /sequestro /chance / entraves. Cada qual em seu verso com uma carga semântica que reproduz a mecânica do verso no interior do discurso.

São trinta poemas. Não há descanso para o leitor. Livro de plástica incomum, que tem tudo para se tornar um clássico na cultura acadêmica, não necessariamente cair no gosto popular. Houve um tempo em que Caetano Veloso era cantor de MPB e o bruxo Machado de Assis, lido com desenvoltura em primeiros anos do ensino médio. Naquele tempo a poesia de Divanize teria tudo para se espraiar com mais tranquilidade.

Em “Grande Depósito de Bugigangas”, ainda perpassa o conjunto dos textos certo traço acadêmico que insiste em se afirmar como marca registrada de Diva. Não que isso seja ruim, pois construto, linguagem que a define como poeta. “Entraves”, como ela mesma havia dito, também povoam as páginas de lá, das bugigangas. Salvo pela apresentação de Flávia Helena, descubro que “bugiganga denota também rede para pescar ou envolver” (HELENA, 2018, p. 5). Agora entendi tudo.

Percebo que a linguagem é a mesma, embora alguns poemas tragam em sua estrutura uma espécie de instantâneo que faz das micronarrativas poéticas algo como a extensão de um hai-kai. Se no livro anterior todos os poemas são de estrofe única, neste, dos quarenta e quatro, sete são divididos em estrofes, apenas sete. Nesses, a estrofação quase que possibilita um descaminho para o minimalismo, reforçando o discurso de Carlos Felipe Moisés de que não há poema longo, quando eles existem é porque talvez haja mais de um poema no referido texto.

A rede, a vara, o anzol, que fazem do pescador alguém que lança para além do não eu a sua tralha em busca de uma prenda, possibilita a tal da liga sugerida por Flávia Helena, senão vejamos:

F I O

fina liga

no aço do fogo

encandece

apita

grita

entristece

edema

de massa mole

entorta

retorce a pele

gomo de lima

rasga na língua

rompe

escorre

finda a vida

encerra o dia

finaliza

o fio

Ao sentir-se como alguém preso no labirinto de uma livraria, física ou virtual, atrás de livros em papel ou para se ler em outros dispositivos (ai, Foucault!), lembre-se de que há outros tipos de lógica além da cartesiana. Entraves e bugigangas fazem parte do caminho de qualquer um. Nem sempre haverá uma deusa, musa, ou diva para iluminar e retirar das trevas obstáculos que norteiam as abstrações.

REFERÊNCIAS

CARBONIERI, Divanize. Entraves. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2017.

_____________________. Grande Depósito de Bugigangas. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2018.

[1] mundoeducacao.bol.uol.com.br/gramatica/poeta-ou-poetisa.htm. Acessado em 20/09/2018. 09h12min.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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