Por Rodrigo Brito*

No dia 26 de junho de 2017, acordamos com uma notícia muito triste: Tabata Brandão havia sido assassinada. Não há, até o momento, nenhum indício que leve ao responsável por esse crime. A Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa investiga o caso, porém, conforme a mídia regional, a análise será difícil por ter ocorrido em uma área afastada da cidade.

Pouco se comenta a respeito e a população finge que nada aconteceu. Quadro muito diferente do que tivemos no ano passado, quando a sociedade se comoveu pelo assassinato de um padre. Houve uma grande mobilização das pessoas e dos órgãos públicos para punir os criminosos e concluir a investigação que, diga-se de passagem, foi sendo abafada quando descobriram que o padre que buscou os adolescentes.

É provável que a comparação com a morte do sacerdote seja considerada como desigual, pois esse era uma personalidade pública e religiosa da cidade. Entretanto, como ambos foram assassinados, acredito que haja semelhanças nas questões que envolvam a proteção social, mas nos noticiários os casos não foram trabalhados da mesma maneira. A desigualdade e o descaso da informação se dão nas manchetes, nas fotos, nos adjetivos, entre outros fatores que, como sabemos muito bem, servem apenas para reforçar estereótipos e marginalizar ainda mais a vítima.

Tabata foi vítima de transfobia e “talvez” por isso haja o silenciamento da população. Novamente, temos exemplo de que a comoção é seletiva, uma vez que a brutalidade do assassinato e a crueldade do silêncio nos mostram o tanto que a violência só incomoda quando atinge pessoas que são valorizadas pela mídia.

Além dessa comparação que comprova uma aparente incoerência, temos diversos outros casos: uma sociedade que aplaudiu a morte de jovens acusados ano passado por assalto a banco, mas que anos antes “absolveu” um membro da classe alta que, dirigindo na avenida Lions sob efeito de gás butano, colidiu com oito carros, deixando uma mulher ferida – crime adjetivado pelo jornalismo local como “cinematográfico” para suavizar a situação.

Na verdade, não acredito que a comoção seletiva seja característica exclusiva de Rondonópolis. Pelo que vemos nas redes sociais e nos jornais de todo o país, as incitações às “revoltas” são selecionadas com o máximo rigor aos interesses. A mídia enquanto reprodutora de discursos da burguesia, faz uso de linguagens depreciativas para mobilizar a população a ter opiniões ultrapassadas. Em relação às informações, assusta a forma como o crime foi noticiado: a ênfase dada à sexualidade e à profissão e a divulgação da foto de seu corpo abandonado na rua. Essa exposição indevida reforça o desprezo do jornalismo com a dignidade do sujeito e com os temas que envolvem o combate à LGBTfobia.

Influenciada por discursos que excluem as minorias em direitos e políticas públicas, o silêncio parece ser a única opção para alguns quando crimes ocorrem com negros, gays, lésbicas, travestis, transgêneros, indígenas e quilombolas. Porém essa escolha é discriminatória, pois é a recusa de se escandalizar com um assassinato a depender de quem fora a vítima.

Tal discriminação é de fácil constatação, pois apesar da inquestionável brutalidade do crime em si, de outro lado evidenciou-se a intolerância em vários níveis e locais: não bastou a exclusão e a violência física, a mídia tratou o assunto com desprezo e a população atendeu com o descaso. Conclusão: Tabata foi assassinada duas vezes, física e socialmente.

Ainda que a omissão seja nítida, por sorte, ainda há quem esteja disposto a trazer os desassossegos de viver num país onde o Estado de exceção é a regra. Ora, não podemos nos silenciar diante da barbárie, pois muitas vidas já foram tiradas, e muitas ainda o serão, em decorrência da segregação social. Não podemos aceitar viver em uma cidade em que a justiça caminha de mãos dadas apenas com a heteronormatividade. Ao se ignorar a morte de Tabata, concorda-se com a impunidade, por isso, fechar os olhos para o assassinato é uma forma de naturalizar o crime.

Não é esse o tipo de justiça ou a comoção seletiva que eu quero para mim. Identifico-me com o narrador de “Mineirinho”, conto de Clarice Lispector (1920-1977), pois o desprezo com que o caso foi tratado pela população de Rondonópolis, me desassossega, me envergonha e me assassina. Nós que estamos em casa, iludidos que a tranca nos protegerá, muitas vezes nos esquecemos de que estamos tranquilos enquanto outros não estão. Assim como na narrativa de Clarice, “meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva”.

Rodrigo Brito é Mestre em Estudos de Linguagem, autor de Solstício ao Luar (2013) 
e VISÕES (2015). www.twitter.com/rodrigoffbrito

 

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