A poesia é um ato. Gritam alto os poetas Alejandro Jodorowsky e Enrique Lihn enquanto fazem do poema uma intervenção, ao pintarem o nome de Pablo Neruda de preto da sua estátua, em uma homenagem a todos os outros poetas anônimos que vivem no Chile. Atiram coisas de suas malas em outro momento, mas se entregam à poesia, a sentem, a dilaceram e a arrancam de suas palavras confortáveis para ser mais do que tinta no papel. A poesia é um ato. 

“Poesia sem fim” de Alejandro Jodorowsky retrata em uma autobiografia surrealista o encontro do poeta com a arte antes de mudar-se para Paris e ingressar no movimento de André Breton.

O velho Jodorowsky apresenta as ruelas decadentes de Santiago onde cresceu, do país que abrigou seus sonhos antes de partir em sua busca pela liberdade. O jovem Jodorowsky, um menino, uma criança, que se vê cercado pela ganância do pai, dono de uma loja que deseja um filho médico. Ao surpreender um “ladrão” em sua loja e castigá-lo em frente ao público enquanto um anão e um homem com perna de pau com vestes nazistas observam, o pai de Jodorowsky abriu ali o mundo da poesia para seu filho. Alejandro esconde um livro do homem repreendido pelo pai. O livro é de Garcia Lorca e mais tarde o menino deleita-se em suas palavras. O filme retrata os seus anos de 1940 a 1950, durante a II Guerra Mundial. É a partir daí que Alejandro passa a se descobrir. Esconde uma máquina de escrever e começa a discorrer suas letras.

O poeta nasce e rompe com a árvore genealógica. A partir de então ingressa em um grupo de artistas chilenos e do menino nasce o homem. Os seus versos começam a pintar a realidade de colorido e ele passa a morar numa casa artística de duas irmãs, uma pintora e a outra bailarina.

Após a profecia de um morador de rua, Alejandro encontra a sua virgem inspiradora. Da loucura da paixão morre a ingenuidade do poeta. Sua musa é também poetisa e sua poesia é verborrágica, é simbólica, forte. Stella Diaz. Tudo o que ele deseja.

A mesma Stella do poema de seu então ídolo Nicanor Parra.

Com o fim deste amor, Alejandro produz títeres incansavelmente. Estes títeres o levam até o seu futuro ateliê. Festas, poesia, liberdade, arte. O velho Jodorowsky acompanha o poeta em sua passagem pelo passado, revisitando os cômodos que guardam a poeira das lembranças.

Em uma dessas festas, ele conhece o amigo poeta Enrique Lihn, com quem começa a realizar os primeiros atos surrealistas através da poesia e da performance. No ápice atiram alimentos em uma plateia compenetrada em ouvi-los recitar seus poemas.

De frente com este passado, Jodorowsky refaz a trilha dos seus próprios passos. O café onde bebe e cria com seus amigos artistas, o reencontro com os pais e novamente seu distanciamento. A mãe que responde em canto, o pai severo, dois extremos.

É preciso continuar, é preciso criar. A rua é tomada por demônios e o poeta é o anjo. É carnaval.

O poeta se enfrenta no espelho, seu reflexo é duramente questionado. QUEM É VOCÊ? O velho Jodorowsky reparte suas reflexões.

Enfim, ele decide partir para Paris. No cais do porto, passam os personagens em preto e branco, como cartazes de um filme que não se vê na película.

A despedida. Ao tentar se desvencilhar do pai, o velho Jodorowsky segura seu eu poeta e diz: “Assim não. Assim. Depois que você parte para Paris, você nunca mais vê o seu pai”. Eles se abraçam. Em mais um ato surrealista se beijam.

Uma mariposa incandescente que voa para além do mar, do barco, da partida.

É amor o que Jodorowsky busca. É poesia sem fim.

Viaja de ti até ti mesmo, tratando de ser o que será.

A única maneira de avançar é extrair a voz da palavra, extrair o ato da intenção,

extrair o amor do apego e o desejo de seu objeto imaginário.

Penetrar o diâmetro do túnel da mente, perdendo mil e uma peles, não ser este nem o outro, uni-los em um só circulo, buscar a visão oculta atrás da visão.

De olho em olho ascender até a última consciência

O artificial é levado pelo vento, como um enxame de pétalas.

Então circulará em suas veias o licor das entranhas cósmicas.

Arruinando os cegos, integrando os bosques nus à árvore encouraçada.

Sua pátria será somente as pegadas de seus pés descalços e sua idade, a idade do mundo.

Enquanto tiver em sua frente uma definição, nunca mais em seu peito a víbora da inveja.

Nunca mais entre as suas pernas o desejo de um corpo sem alma.

Elegerá por caminho o impalpável nevoeiro.

Vencerá o espelho que compara.

Demolirá a pirâmide de ancestrais que leva incrustada em suas costas.

A ascensão e a queda se amalgamam.

Os olhos que vêem por fim se vêem.

3 Comentários

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here