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Por Lucas Ninno*

Desembarquei na rodoviária de Concepción no final da tarde, seis horas depois de deixar a capital, Assunção. Consegui um quarto barato num hotel horrível, com paredes mofadas e música gospel ressoando no ar. Deixei a mochila no chão, preparei a câmera e saí daquela espelunca para dar umas voltas e conseguir informações sobre o lendário Aquidaban, um barco que desde os anos 80 navega até Bahia Negra, na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Bolívia.

As ruas de terra e a luz amarelada da hora mágica me levaram ao cais do antigo porto da cidade. É lá que a garotada se reúne para namorar e demonstrar coragem saltando dos guindastes abandonados, quebrando a calmaria do rio. Não se ouve espanhol, que aqui é coisa de gringo como eu. O Guarani, apesar de não ser o idioma oficial do Paraguai, é o que se fala em todas as partes, herança das mesmas tradições indígenas que conservam costumes como o tereré, a erva mate tomada com água gelada no chifre de boi. É refrescante, rico em cafeína e te deixa ligadão, recomendo! Todos no porto conhecem o Aquidaban, o barco sai dali mesmo, às terças, e retorna no sábado. É o único que ainda navega levando passageiros, em uma viagem ininterrupta de quatro dias para ir e outros quatro para voltar. Como cheguei em uma quinta, passei cinco dias conhecendo a cidade, fotografando o cais no fim do dia e retornando para minha caverna mofada, depois de uma cerveja solitária. Na segunda-feira, comprei a passagem e reservei uma rede de dormir no corredor da embarcação. Meu destino final era Porto Murtinho, cidade brasileira às margens do mesmo rio, em Mato Grosso do Sul, mais ou menos na metade do percurso entre Concepción e Bahia Negra.

Acrobacias tomam conta do entardecer no antigo cais de Concepción. O rio Paraguai é o principal ponto de encontro da juventude da cidade.

Na terça pela manhã, corri ansioso para o cais, onde vi o Aquidaban pela primeira vez. A tripulação carregava caixotes, frutas, motocicletas, canos de pvc, aparelhos eletrônicos, combustível e qualquer outro tipo de mercadoria que pudesse ser empilhada em seu casco de 35m de comprimento. Uma estrutura branca de madeira comporta alguns poucos quartos com beliche, a cabine de comando e a cozinha, localizada na popa. A maioria dos passageiros dormem no chão, nos bancos de madeira ou em redes no corredor, como a que eu aluguei. Com tudo — quase — devidamente acomodado, o capitão ligou o barulhento motor a diesel, fumaceando o ambiente e espalhando o cheiro da aventura. Partimos vagarosamente rumo ao norte, cortando a corrente do preguiçoso rio Paraguai.

Há quem pense que o rio tem o nome do país. Não. O país tem o nome do rio. Nada mais justo, já que suas águas permitiram o desenvolvimento da nação. Aliás, o melhor é dizer “nações”, no plural. Quatro países usufruem das riquezas de seu leito. O Paraguai brota no Brasil, em Mato Grosso e atravessa o Pantanal, onde abastecido pela maior planície alagada do planeta, se transforma em um gigante e rasteja lentamente em direção ao sul. A margem direita então, encontra o território boliviano, entra no chaco paraguaio e chega a Argentina 2621km depois de nascer. Nesse caminho, conecta diversas cidades e povoados. No Brasil, Cáceres, Corumbá e Porto Murtinho tem sua história diretamente ligada à essas águas. No Paraguai o primeiro grande centro é Concepción, na região central e depois a capital Assunção, que possui o maior porto do país.

O Aquidaban, contra a corrente, navega entre 5 e 10 km/h. Não é aventura para quem tem pressa. A viagem até Porto Murtinho dura em média 40h. No caminho, atraca em pequenas cidades e vilas, onde o sobe-e-desce de passageiros e cargas é sempre acompanhado pela população local. Durante os meses de chuva, muitos vilarejos ficam ilhados pela cheia do chaco. Alguns, mesmo no tempo seco, não possuem estradas que façam a ligação com outras partes do país. Para essa gente, o rio é o único caminho. Começo então a entender a mística em torno do Aquidaban. Outras embarcações viajam com carga — gado, soja, milho — mas esta leva gente. É a filha que estuda na cidade e vai visitar os pais no sítio, o peão boiadeiro que vai pedir a noiva em casamento, o garoto que finalmente conseguiu comprar a moto nova na cidade grande e está levando o brinquedo pra casa. Histórias e sonhos, reencontros proporcionados pelas lentas águas do Paraguai. De tempos em tempos, ouço o motor diminuir a potência e uma pequena lancha, atracada na lateral do barco, leva e trás passageiros que moram em sítios na beira do rio. Uma espécie de táxi aquático expresso. Eu, guri de cidade, me impressiono com a habilidade do capitão, que sem GPS conhece cada curva e cada casa do rio, mesmo durante a noite. Talvez seus 28 anos navegando o trecho expliquem.

O lendário Aquidaban, navegando sob o céu tempestuoso. No alto, de camiseta verde, o capitão analisa as condições do rio. “Com chuva forte eu não navego. A natureza é um deus, a nós cabe apenas respeitar.” — disse ele.
O lendário Aquidaban, navegando sob o céu tempestuoso. No alto, de camiseta verde, o capitão analisa as condições do rio. “Com chuva forte eu não navego. A natureza é um deus, a nós cabe apenas respeitar.” — disse ele.

No segundo dia de navegação, a tarde foi fria e o céu fechado. Desci para a proa e fiquei ali por meia hora, observando a luz diminuir enquanto nas ilhas, pássaros se empoleiravam nos galhos das árvores. Me avisaram que a margem direita já era o Brasil. Depois de três meses vagando longe de casa, ver meu país ali do outro lado me encheu de alegria. Outros passageiros também desceram para a proa e um deles ligou um rádio antigo, com uma antena enorme. E em plena era de smartphones individualistas, nos juntamos em volta do radião para ouvir e imaginar uma partida entre Corinthians e Cerro Porteño, que acontecia em Assunção. Por 3 a 2, os paraguaios venceram. Derrotado e contente, deitei na minha rede e vi pela janela as luzes de Porto Murtinho tingindo de amarelo o céu nublado. O Barco atracou na margem paraguaia, seguido por várias barquetas oferecendo viagens ao lado brasileiro. Desci com minha mochila, cruzei o rio com uma das “voadeiras” e pisei finalmente, em meu país.

O rádio que transmitiu a partida entre Corinthians e Cerro Porteño, que acontecia em Assunção.
O rádio que transmitiu a partida entre Corinthians e Cerro Porteño, que acontecia em Assunção.

De volta para casa, retomei a rotina pelas estradas de asfalto e a velocidades maiores, controladas por radar. Aqui vejo os jogos do Corinthians sozinho, em uma TV de tela plana. Muitas vezes fico triste, mesmo quando vencemos. Pago prestações, plano de saúde, seguro do carro. Sou roubado, e tomo cerveja nos finais de semana. Beijo flores e os espinhos das flores. Assisto a um golpe de estado. Sou tragado pela fumaça, obrigações sociais, notas fiscais, agência, conta e CPF. E nos domingos sonolentos, deito e sonho que estou navegando, na proa de um barco, sentindo o vento no rosto e o céu estrelado, levando a vida em águas mansas. Nesse momento abro o computador e escrevo, observo as fotos. Me dou conta de que fotografo para lembrar e, no fim das contas, também para esquecer.

lucas*Lucas Ninno é fotógrafo e atualmente desenvolve o projeto “Meu amor, América”, onde conta histórias de suas andanças pelo continente latino. Em 2014 fundou a agência Alvorada Imagens, em Cuiabá, que realiza trabalhos comerciais e garante o pão de cada dia, além da cerveja do fim de semana. A última viagem, de três meses, correu o sul do Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. Trabalha com uma Nikon D800 e as lentes 28mm f2.8, 50mm f1.4 e 85mm f1.8.

5 Comentários

  1. Alguém sabe se ainda esse barco faz as viagens desde Conceição até Bahia negra? Como pesquiso isso? Algum telefone para contato no porto? Obrigado gente, estou pesquisando para um amigo suíço que quer fazer a viagem com sua filha.

    • Oi Júlio, desculpe pela demora em responder. Eu acredito que o aquidaban ainda faça essa viagem, pois muitos povoados dependem dele na cheia. Tem o dia e a hora certa pra sair, se você conseguir ligar ou escrever para algum hotel em concepción acredito que consiga a informação certinha. Tem que comprar o ticket com certa antecedência pq ele lota.

      Abraço

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