Por Danilo Fochesatto*

Ilustração de I. Bê. Gomes
Ilustração de Augusto Figliaggi

Era um milharal. E estava seco. Completamente seco. Tínhamos de atravessá-lo. Espigas de milho mal tratadas jaziam aos montes pelo chão. Algo nos perseguia. Ninguém falava. Nada de questões ou objeções. Não fosse pelo barulho de nossos pés descalços esmagando as folhas secas, o silêncio seria pleno. Talvez como o que conseguimos ao término de acalorada discussão seguida de troca de tiros. Saudosos estampidos. Há semanas. Quando o grupo estava completo. Agora somos seis. Mas já fomos mais do que isso. O sétimo morrera ontem, de inanição. Anteontem, o oitavo e o nono: afogados na travessia do rio. Éramos nove, então. Já fomos mais completos. Há um com ossos fraturados. Caiu durante a escalada noturna da montanha. Outro tem uma bala alojada no corpo. Eu sou o de melhor aparência externa. Apenas arranhões, hematomas, cortes superficiais. Por isso me escolheram para liderar o grupo. Por isso eu sempre dizia que os cantis estão ocos, que não tínhamos munição ou suprimentos, nem reforços para convocar. A fome era apenas uma severa sensação fisiológica algo distante. Ninguém falava nada. Só caminhávamos. Aparentemente eu era o mais intacto. De boca seca. O líder natural daquela cadeia de seres ameaçados. Tínhamos de cruzar o milharal. “Do outro lado encontraremos a prisão”, insistia o soldado que cuidava do caminho e portava uma espécie de mapa que nunca cheguei a ver. Da prisão resgataríamos nosso xamã psicomágico. Com essa intenção declarada, e diversas escondidas, seguíamos pelas entranhas daquela extinta plantação. Nós mesmos a abandonamos no início da diáspora. Durante a fuga precipitada. Meses atrás. Através dela fomos seguindo. E ainda o estamos fazendo. Em árduos passos arrastados. Simbolicamente para dentro de nossos corpos. Em círculos dentro de círculos. Procurando um rastro. Voltamos porque agora possuímos armas. Nas mãos de quantos homens essas armas já haviam passado? Só na dos mortos. Para estarem conosco, elas só podem ter pertencido aos fantasmas. Nosso grupo estava cansado de tudo. Não sabíamos por mais quanto tempo permaneceríamos naquele campo desolado, mas parecia-nos tempo demais. Parecia o milharal mais longo do planeta. Tão extenso que o resto era mero pressentimento. Nossas bocas fechadas queriam dizer que não o venceríamos, nunca. Nós nos deparamos com ossos de animais mortos. Olhei-os atentamente. Olhei para o grupo e notei que nossas identidades se confundiam. “Em frente!”, ordenei. Sigamos o gosto da fumaça do trem que serpenteia a colina. Pisar nos ossos soava como pisar nas folhas secas ou nas espigas. Pisar em nós mesmos não doeria tanto. Em linhas gerais, dava tudo no mesmo. A gente andava. Exaustos desde o remoto dia em que a diáspora começara. Degredados a partir do dia em que nos reconhecemos no espelho da superação dos conceitos etnocêntricos. E, de repente, encobrindo o céu, uma nuvem de gafanhotos atravessou o grupo. Nós, os seis, paramos. O mundo nos tornara excessivamente rígidos. Mesmo com os gafanhotos batendo em nossos rostos e ferindo nossa pele, ninguém se movia. Ninguém falava nada. Nós cantávamos o hino nacional dos mortos. Escutamos tiros sendo disparados. “Em qual projétil virá minha redenção?”, pensei, tomado pela fadiga de ter esperança. O sol que adentrava pela voraz legião de gafanhotos deixava as palhas do milharal excessivamente douradas. Quando a nuvem terminasse de passar, voltaríamos a caminhar. Procurávamos por um rastro coerente. Alguma coisa nos seguia. As pegadas do grupo desapareciam. Fomos afundando na terra. Precisávamos atravessar o milharal, mas não sabíamos mais qual o intuito da diáspora.

*Conto do livro “Lá, onde uma porta jamais parou de bater” (2016)

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