Os pés descalços entram sorrateiros, deslizando sobre o piso de carpete do palco. Uma figura pequena, magra e quase imperceptível na escuridão vai tomando a forma de um corpo negro de mulher. A vestimenta de aparência terrosa ilustra um visual de tom sobre tom. O sobretudo se movimenta em conformidade e ritmo com os longos dreadlocks. Eles gemem silenciosos gritos de resistência e força daquela grandiosa artista, poeta e feminista de pele preta. O seu nome? É Akua Naru.

Em uma relação já de pura e simples intimidade como um casal de namorados adolescente entrelaçados embaixo das cobertas, ela toca sutilmente o microfone com seus finos e delicados dedos. A boca se abre lentamente e a música toma a forma de uma voz poderosa, afiada e quase onipresente.

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Foto: Alessandra Marimon

Os instrumentos da banda de homens pretos e brancos revelam a harmonia. Já a plateia tímida, formada majoritariamente por jovens e adolescentes brancos – já que estamos situados em Nuremberg, na Alemanha – vibra em gritos e aplausos, como se estivessem esperando uma eternidade por aquele momento. A vibe é boa. Let the show begin.

O canário da mina de carvão

O propósito era mostrar parte do trabalho do seu terceiro álbum,“The Miner’s Canary”, lançado pela sua própria gravadora independente, “The Urban Area”. Um tiro bem dado, um pow pow pow estridente direto nos ouvidos. O título foi baseado em um livro de mesmo nome, de Lani Gunier e Gerald Torres, que reflete sobre as relações de raça e poder nos Estados Unidos. Em português significa “O canário da mina de carvão”.

Assim como a ave que era usada antigamente pelos mineiros para alertar sobre perigos iminentes daquela atmosfera de gases venenosos – um canário morto sinalizava uma evacuação imediata – as questões de raça servem para refletir que tipo de sociedade vivemos e queremos para o futuro.

Enquanto um canário ainda estiver cantando, ainda haverá a possibilidade de um sonho tornar-se possível. O pássaro pode ser vulnerável, ser usado, abusado, assassinado; mas também demonstra que é forte, corajoso e resistente, assim como as comunidades que espelha e em que um sistema inteiro é dependente.

Arte do último álbum de Akua Naru
Arte do último álbum de Akua Naru

Akua Naru centraliza essas questões de forma sensível, focando principalmente nas experiências da mulher negra das comunidades norte-americanas mas também estrangeiras, com muita poesia e hip-hop. Numa verdadeira paleta musical, ela mistura os teclados e violinos de jazz com os vocais de gospel, numa fusão de rock n’roll, blues, black music e soul.

Do Gospel ao hip-hop underground

Brotada em meio a racialmente segregada New Haven, em Connecticut, nos Estados Unidos, a poeta foi influenciada pela música desde a infância quando cantava no coral da igreja Pentecostal. Dentro desse universo religioso ela foi apresentada a grandes figuras de líderes femininas negras, da pastora a diretora do coral.

Mas logo aos nove de anos de idade ela descobriria o hip-hop. Foi seu tio, um produtor musical, quem a levou para o lado underground da força. A menina já era apaixonada por literatura e poesia e encontrou naquele gênero musical o poder que faltava para se expressar.

Foto: Alessandra Marimon
Foto: Alessandra Marimon

Já na adolescência, começou a enxergar na militância um caminho para expandir seus horizontes políticos e lutar pelos direitos dos negros. Ainda jovem, ela presenciou o horror de uma mulher apanhando quase até a morte, o que deixou uma marca duradoura em sua memória. Logo brotou-se uma consciência de que deveria continuar o caminho de resistência contra as opressões, principalmente aquelas relacionadas à mulher negra, o que formaria a base das suas canções.

Depois participou de programas voltados à formação de jovens e aos poucos foi se integrando a núcleos de ativistas políticos. Devorava livros de importantes autores negros como Frantz Fanon, Angela Davis, Malcom X e Assata Shakur. Mas também estudou teatro, canto e composição em uma empresa de repertório, onde teve acesso a um estúdio musical. Lá ela gravou e escreveu suas primeiras canções, até entrar na universidade.

A viagem em chamas: dos EUA para o mundo

Atualmente Akua Naru mora em Colônia, na Alemanha. Tudo começou quando ela fez parceria com o time de produtores The Drumkidz e em janeiro de 2011 lançou seu primeiro álbum, “The Journey Aflame”. As letras narram a experiência secular das mulheres negras, desde a era pré-colonial africana, até os dias atuais. Logo depois do lançamento, o disco alcançou o número um nas paradas das rádios universitárias norte-americanas.

Capa do álbum "The Journey Aflame"
Capa do álbum “The Journey Aflame”

A garota de Connecticut já alçava voos por países do mundo inteiro, do continente americano a Londres. A exemplo da turnê no Brasil deste ano, Akua Naru passou por cinco cidades: São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro (com participação do Emicida), Goiânia (pro Festival Bananada) e Curitiba.

E ela não dá sinais de que vai parar de provocar tão cedo. É verdade que uma nova face na cena musical toma cada vez mais força. E é negra. E mulher. E poderosa. Assim como em uma de suas canções, ela conseguiu provar o que tanto repetiu na letra: O mundo está ouvindo. O mundo está ouvindo. E está mesmo.

Eargasm: Me diz, você gosta assim? Você gosta assim?

Quando todos já estão entorpecidos pela música, Akua Naru decide que não é o bastante. Ela não quer me ver só atordoada, ela quer me ver gozar. Então, com aquela voz que arrepia os pelos do corpo ao primeiro som, ela começa a se desculpar. Uma desculpa que talvez é só uma desculpa mesmo pra fazer você se excitar com a poesia de “Poetry, How Does It Feel?”, canção do “The Journey Aflame”. E a sensação é muito boa.

A rapper sussurra no microfone enquanto o teclado e a bateria acompanham suas falas suavemente: “Eu só quero me desculpar, porque eu percebi que a gente não se conhece muito bem. Vocês tão ligados, eu não venho muito pra Nuremberg e sinto que não aqueci vocês do jeito que eu devia, do jeito que eu sei que posso. Eu sinto que as preliminares não foram o suficiente, mas eu tava tentando. E queria que quando fosse tempo de atingir o clímax, todos estivessem preparados.”

If love had a sound (Se o amor tivesse um som)
This would be that sound (Esse seria o som)
Love, love (Amor, amor)
We would be the band to play it (Nós seríamos a banda para tocar)

E continua. “Somos todos adultos aqui, então vamos lá. E agora eu preciso falar com a banda, dá licença um minuto”. O sax entra na jogada. Seu som provoca sensações estranhas no meu corpo. Quero senti-lo mais forte. “Preciso de vocês comigo aqui em todo o caminho. Isso. Assim. Bem assim. Bem assim. Hmmmm. Isso, então Nuremberg, me escuta: agora quero aquecer vocês e levá-los pro momento que eu preciso, tá bem? Vocês são tão sexy. Tão sexy. Ai meu Deus. Saca só. Vocês tão curtindo? Me diz, vai.”

O solo de sax tomou conta do ambiente. Por alguns minutos, todos entraram em êxtase com as vibrações metálicas do instrumento.

Foi aí que pude perceber ainda mais a força daquela mulher. Com uma poesia que te deixa louca de tesão, que te faz querer mais e mais, Akua Naru conseguiu. Como na letra, ela escreveu poesia até o clímax, até o ponto e o lugar em que o tempo e o espaço eram um só. Nadou nas correntes das nossas vibrações. Would you like that? Tell me, would you like that?, e nós respondemos, isso, isso, assim, assim. E gozamos.

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Jornalista mato-grossense formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e aluna de mestrado no programa de Divulgação Científica e Cultural da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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