Penúltimo longa metragem do diretor Paul Thomas Anderson, “Vício Inerente” é uma história como poucas. Considerado um livro “impossível de ser adaptado para o cinema e fazer sentido”, a jornada do investigador particular hippie não só é transposta para as telas com maestria, mas tem seu sentido intensificado graças as lentes do diretor.

Significativa o suficiente para ser lembrada cinquenta anos depois, a subcultura Hippie iniciada nos Estados Unidos no início dos anos sessenta, e difundida pelo mundo todo graças a sua mensagem de vida em comunhão, experimentação artística e respeito a natureza, perdera sua intensidade no início da década seguinte dando lugar à paranóia, o consumo irracional e excessivo e as controvérsias da presidência de Nixon.

Situado na virada da década de sessenta para setenta, o livro escrito por Thomas Pynchon, é um testamento para esta subcultura e a miríade de sentimentos convolutos que fizeram parte da era do “Paz e Amor”. Seu personagem principal, Doc Sportello, é a personificação dos valores amistosos da subcultura. Muito mais preocupado em fazer o certo e compartilhar o bem do que nos lucros do ofício, o investigador particular inebriado começa sua jornada à pedidos de sua ex-namorada, que está a procura de seu atual relacionamento, Micky Wolfmann, um empresário desaparecido do ramo da construção civil, famoso por seus condomínios de má qualidade vendido para os marginalizados.

Conhecido por reconstruir retratos quase perfeitos das épocas em que se situam seus filmes – a era disco recriada das bocas de sino à promiscuidade em “Boogie Nights”, ou o retrato do pós guerra e o cartesianismo visual do anos cinquenta em “O Mestre”  P. T. Anderson consegue mais uma vez transportar seus espectadores para os anos loucos da experimentação com LSD e os limites da mente. Filmado em 70 milímetros com um figurino impecável e um trabalho de câmera que constantemente te puxa para dentro do filme, o espectador é convidado o tempo todo a partilhar da experiência de Doc.

Alterado pelo uso constante de maconha e outros psicoativos, a jornada de Doc muda de acordo com sua percepção da situação à sua volta. Com um roteiro confuso que parece não ir a lugar nenhum, a história em si – a busca de Doc por Wolfmann – não é o foco do filme, mas sim a experiência de viver nesta era encoberta por uma névoa de pensamentos desconexos e liberdade artística sem igual. Muito mais preocupado em nos apresentar estas pessoas e suas sensações, o filme se torna – como os grandes filmes dos anos 70 – um filme de personagens.

Como já dissera o próprio diretor, “Eu não sou bom em recontar as histórias que eu li porque o que sempre fica comigo não é a história, mas as emoções que ela evoca”, Vício Inerente te obriga a se deixar levar pelas sensações e se desligar da necessidade de uma conclusão. Envolvidos na paranóia de seus personagens alucinados e em sua confusão mental, nos transportamos por alguns minutos para esta época de transição onde à primeira vista nada faz sentido e todos parecem fora de seus lugares. inserindo elementos de forma sutil, o filme constrói uma narrativa que deixa o espectador se indagando sobre o que é real, e que é pura viagem da cabeça de Doc.

Cheio de mistério e conspirações sem ser um suspense, recheado de histórias de amor sem ser um romance, e hilário em todos os sentidos sem ser uma comédia, o filme de Anderson foge os rótulos para se tornar algo singular, um trabalho difícil, mas completo. Com um elenco gigantesco trabalhando com perfeição, é fácil se sentir assistindo um filme da década, embalado pelas guitarras destorcidas, as citaras e o groovy da trilha sonora selecionada a dedo. Mais um trabalho de Anderson em parceria com Jonny Greenwood – baixista da banda Radiohead, responsável pelas trilhas sonoras de “Sangue Negro” e “O Mestre” de Anderson – a trilha é também um personagem, com sua identidade e suas emoções que só acrescentam à experiência.

O termo Vício Inerente utilizado em alguns círculos comerciais para descrever uma propriedade que tem em seu fundamento ou característica uma falha irreparável, que a impossibilita de cumprir seu propósito e por conseguinte é responsável por seu fim, entra na história para descrever os princípios fundamentais da subcultura que acabaram por ser a causa de sua destruição. A inadequação de seus valores diante as mudanças históricas que ocorriam no país e moldavam a mente da população, fizeram com que ela se dissipasse. É seu vício, sua paixão por sua ex namorada Shasta que força Doc a sair em sua jornada e é responsável por todos os seus conflitos, reais ou não.

Bem recebido pela crítica – o filme inclusive concorrera ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Figurino em 2014 – Vício Inerente não fora tão bem aceito pela audiência, que achara dificuldade em seu roteiro confuso e sua trama aparentemente  sem resolução – todos os pontos da história são resolvidos ao longo do filme, mas talvez você precise assistir uma segunda vez para notar – e hoje é listado como um dos filmes de menor sucesso do diretor. Resultado de uma fase mais intimista em sua carreira, seus filmes mais recentes, apesar do pouco sucesso comercial são os mais complexos já feitos por Anderson. Produto de um ano de grandes filmes – no mesmo ano tivemos Whiplash, O Grande Hotel Budapeste, Birdman e Interstellar, só para citar alguns – Vício Inerente passara, terrívelmente, mal apreciado e despercebido. Não se eu puder evitar.

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Thales de Mendonça tem 25 anos, é escritor e produtor audiovisual em São Paulo. Autor do livro de ficção científica “D3-VA”, trabalha no mercado há seis anos e escreve para o Cidadão Cultura às segundas feiras.

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