Por Leonardo Roberto*

Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com a das doces manhãs primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só, e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas iguais à minha. Sou tão feliz, meu amigo, e de tal modo, mergulhado no tranquilo sentimento da minha própria existência…

Esse belo relato foi retirado de um romance que marcou a literatura alemã e mundial do século XVIII, que contribuiu para a reflexão existencialista e dá nome, além de ser a analogia que sustenta a teoria psicanalítica, ao “efeito Werther” que, grosso modo, se refere ao fenômeno de imitação de uma ação ou ideia pelo público de uma determinada produção midiática, sendo comumente relacionada ao suicídio. No livro de Johann Wolfgang Goethe, “Os sofrimentos do jovem Werther”, publicado em 1774, o protagonista, Werther, troca correspondências com seu amigo Guilherme, comentando sobre experiências, alegrias e dissabores da vida cotidiana, até o encontro com a mulher por quem viria a se apaixonar, Charlotte, com quem teria uma relação que culminaria em uma desilusão, levando ao suicídio o jovem aristocrata.

Apesar de belíssimas passagens como a citada acima, a obra se popularizou não só pela sua qualidade literária, mas também por seus efeitos negativos. Na época de sua publicação, o livro foi proibido em diversos países da Europa, pela onda de suicídios entre jovens leitores que se espelharam e reproduziram os métodos do protagonista do romance para tirar a própria vida.

É importante atentarmos para a época em que o livro foi escrito e a importância das obras literárias na vida cultural, política e ideológica do século XVIII, uma vez que a imprensa escrita era o único meio de ampla comunicação. Ainda que haja certo ceticismo no senso comum quanto à influência pungente da mídia na formação do homem e sua personalidade, me sustento na hipótese de que os produtos culturais consumidos são, de fato, marcantes na formação dos valores do indivíduo. Não somos simples receptores passivos, agimos e reagimos diante de cada informação em diversos níveis de consciência, e a maneira e intensidade pelas quais somos tocados pelas artes, notícias midiáticas e suas mensagens são particulares de cada indivíduo, em cada contexto.

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Ilustração: Vinícius A. Silva Appolari

Na filosofia da arte trabalha-se com a ideia de suspensão voluntária da descrença, que ocorre quando o leitor, o espectador, enfim, o público em geral, deixa de lado seu ceticismo para aceitar a “realidade alternativa” proposta por determinada produção e com ela interagir, perdoando componentes irreais, impossíveis e até mesmo ridículos. J.R.R Tolkien, que entendia pouco sobre a criação de realidades fantasiosas, atentava para a importância da capacidade do storyteller de manipular a percepção de sua plateia. O quadrinista inglês Alan Moore ressalta o caráter experimental de suas obras, que servem como ferramentas que auxiliam na percepção de um mundo cada vez mais complexo.

Edgar Morin, em “O espírito do tempo”, chama atenção para o fenômeno da             projeção-identificativa do espectador, ao analisar filmes holywoodianos, onde o público cria vínculos imaginários com os personagens, sente simpatia pelo mocinho e antipatia pelo vilão e mais, se imagina na “realidade” vivida pelo personagem, se coloca no lugar do homem ou da mulher na hora do beijo, clímax do final feliz em muitas produções, como ressalta o autor ao tratar dos happy-endings como imperativos na construção do ideal de felicidade.

Em suma, as consequências indesejadas da obra de Goethe são uma evidência de que, muito ou pouco, a arte influencia as ações de quem as contempla e também pode nos levar a refletir, entre uma infinidade de temas, sobre o que nos interessa aqui: como a ideia de morte vem sendo tratado pela sociedade ocidental.

O próprio Morin se debruçou sobre o tema em “O homem e a morte”. Um dos capítulos desse livro foi denominado “a crise contemporânea da morte”, assunto que seria explorado por outro autor francês, o historiador Philipe Ariès que, em certo ponto de seu estudo, intitulado: “História da Morte no Ocidente”, aponta que na era moderna ocorre um processo de privação da consciência da morte, onde o moribundo priva-se voluntariamente da consciência de estar morrendo. Comparou como, no século XVIII e XIX, a iminência da morte era tratada pelas pessoas do círculo social do moribundo, sempre presentes e acompanhando a pessoa em seus momentos finais.

Propunha o autor, que a ciência da própria morte era mais comum e desejável naquela época, apontando para uma gradual e intencional ignorância da própria mortalidade pelo homem com o passar do tempo, culminando com a negação que é empregada ao tema na sociedade contemporânea. Trazendo referências ao camponês de Tolstói – que responde à mulher: “A morte está presente”, quando ela pergunta se está tudo bem – e a outras obras clássicas da literatura desse período, Ariès mostra que o reconhecimento da eminência da morte era obrigação moral do homem e, quando não o fizesse, as pessoas próximas a ele deveriam adverti-lo. Além disso, a incidência da ideia de salvação nos comportamentos e hábitos da sociedade ocidental, majoritariamente cristã, fazia da morte súbita o pior dos desfechos para o homem, por nela não caber o arrependimento. O próprio rito funerário era uma ocasião social, como o próprio autor diz: “Assim como nascia-se em público, morria-se em público.”. No século XXI, no entanto, alertar alguém doente sobre a eminência de sua morte pode soar imoral e insensível.

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Ilustração: Vinícius A. Silva Appolari

A noção moderna de morte é paradoxal, por vezes representada como algo banal e, ao mesmo tempo, tratada como tabu no íntimo das relações. Sua representação na mídia se tornou algo natural e, em alguns casos, recurso básico para uma produção de sucesso. Como imaginar um blockbuster de ação sem um número considerável de mortes? Os óbitos que eventualmente surgem nas edições diárias dos jornais são vistos meramente como dados estatísticos. A comoção solidária de alguém distante das vítimas é um sentimento ligeiro, deslocado. Em contrapartida, falar sobre a inevitabilidade da própria morte e os sentimentos que dali surgem não é o assunto mais popular nos almoços de família nos domingos. Ainda que sociedades distintas tenham relações distintas com a concepção da morte (exemplos elucidativos dessa diferença nas Américas são a tradições fúnebres dos nativos americanos, como o “Dia de los muertos” no México e a tradição do povo Bororo, daqui de Mato Grosso) julgo importante refletir sobre as implicações dessa ambiguidade banal-tabu.

A própria morte pensada como tabu soa como um grande obstáculo no combate ao suicídio, que se torna um problema de saúde pública cada vez mais sério. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o número de suicídios cresce a cada ano, principalmente entre os jovens. Estima-se que ocorre um suicídio a cada 40 segundos no mundo. No Brasil, o número de suicídios entre os jovens cresceu cerca de 30% nos últimos 25 anos e figura entre as principais causas de morte entre jovens de 15-29 anos. Números alarmantes e a dificuldade com que se trata a mortalidade criam um cenário preocupante, numa sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo cada vez mais curto do que aquele necessário para a consolidação de hábitos e rotinas, das nossas formas de agir e, consequentemente, dos valores, regras e leis sociais.

Émile Durkheim, em sua clássica obra sobre o Suicídio, coloca a anomia como uma de suas principais causas, além de trazer a religião, o casamento e a economia como determinantes para os índices de autocídio. Segundo o autor, mudanças repentinas na sociedade, como crises econômicas e guerras, levariam a uma falta de regulamentação das normas sociais. As regras e leis falhariam em manter a ordem social e, com isso, os indivíduos alimentariam expectativas, desejos e paixões irreais, levando ao desprezo à moral consuetudinária. A frustração proveniente dessa desregulamentação criaria um cenário potencialmente mórbido, onde cresceriam os números de suicídios. Ora, ainda que Durkheim tenha feito seu estudo com base em sociedades europeias do século XIX, podemos ainda considerar a aplicabilidade de suas teorias em nossa sociedade, que muda em um ritmo frenético.

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Ilustração: Vinícius A. Silva Appolari

O turbilhão de informações à disposição das novas gerações constantemente conectadas em rede, aliado ao questionamento da autoridade familiar, comum na juventude, podem levar à busca de referências dúbias em questões essenciais. O “desafio” da Baleia Azul recebeu grande atenção da mídia nas semanas recentes. Nascido na Rússia, foram registradas ali mais de cem mortes relacionadas ao “jogo”, espalhando-se para outros países, entre eles o Brasil.

Por mais que tenham havido manifestações espontâneas e solidárias por parte da sociedade para lidar com a questão, como na campanha “Baleia rosa”, de valorização à vida e apoio emocional aos jovens, não é difícil encontrar manifestações que ridicularizam e têm o potencial de agravar a questão. Memes ironizando os casos e pronunciamentos arrojados de “influenciadores digitais” – expressando a famosa e altamente irreflexiva ideia de “geração mimimi” – só podem contribuir negativamente, agravando o quadro de indivíduos já fragilizados, relativizando e desconsiderando os sentimentos daqueles com tendências suicidas.

Um exemplo é o vídeo do famoso youtuber Cauê Moura sobre o jogo, onde se desdobra, de maneira performática, para afirmar que o caso tomou a proporção que tomou por conta do sensacionalismo da mídia e que foram poucos os casos em que foi comprovada a relação da morte com o jogo, chegando a dizer que foram apenas “três ou quatro retardados” que cometeram o suicídio, o que teria levado à euforia popular. Com uma visível insensibilidade e despreparo para trabalhar a questão, a “contribuição” do youtuber teve mais de 1 milhão de visualizações.

O seriado 13 Reasons Why, da Netflix, também trouxe à tona a discussão sobre o tabu e foi muito bem recebido pelo público. Levantou questões correlatas com a morte autoprovocada por jovens, como o bullying, assédio sexual e solidão, provocando um notável aumento no número de contatos com os Centros de Valorização da Vida* (CVV’s), organização não governamental que desempenha um trabalho essencial na prevenção de suicídio, promovendo apoio emocional por meio de atendimentos voluntários e gratuitos. Ainda que seja importante a participação do seriado na visibilidade que o assunto vem recebendo, profissionais da saúde e críticos de cinema se posicionaram contra a produção. Destaco a crítica de Pablo Villaça e a publicação no perfil do Facebook do psiquiatra Luís Fernando Tófoli, listando 13 razões para não se ver a série. Alguns pontos em comum expressos por eles se baseiam na premissa de que a série levanta a discussão e pode conscientizar pessoas mais estáveis psicologicamente, mas também podem induzir ao suicídio outros em situação de instabilidade.

O grande erro da série, e aqui concordo absolutamente com os dois, é mostrar a cena em que Hannah (a vítima, cuja morte dá corpo à narrativa) corta os pulsos, indo contra as recomendações da sociedade americana de prevenção ao suicídio, que elaborou um manual de como retratar e quando expor, ou não, o acontecimento. No mesmo episódio, como aponta Tófoli, é tocada a música “Hey Hey, My My” de Neil Young, que passou a ser fortemente relacionada com o autocídio depois que Kurt Cobain citou-a em sua carta suicida. Apontam também o erro dos produtores em não trabalhar a questão do adoecimento mental da garota suicida e preservar a ideia de culpabilização dos sobreviventes, como são chamados os que pertencem ao círculo social e familiar da vítima.

Ilustração: Vinícius A. Silva Appolari
Ilustração: Vinícius A. Silva Appolari

Mas, faria sentido esperar um rigor ético da Netflix? As produções da empresa são feitas através de uma minuciosa coleta de dados de navegação de seu público dentro da plataforma. Quando os filmes e séries originais vão ao ar, têm grande probabilidade de fazer sucesso em determinado segmento de seu público global, a análise de big data indica quais os atores melhor contemplados, quais histórias dão mais pano, enfim, não é difícil perceber que o trabalho de produzir para todos os segmentos da empresa tem dado certo. O ponto aqui é não esperar intenções integralmente altruístas do estúdio em um momento em que ética e responsabilidade social vêm sendo usadas como potentes ferramentas de marketing.

Ansiedade, depressão e suicídio são questões de saúde pública. O “jogo” Baleia azul envolve crime cibernético e os jovens em posições debilitadas deveriam ter um maior amparo para lidar com os percalços do amadurecimento. O problema costuma ser trabalhado por organizações sociais espontâneas, voluntárias e pelas famílias, que muitas vezes não têm a estrutura ou o conhecimento necessário para tratar do tema. Me pergunto se não seria responsabilidade do Estado a conscientização acerca dessa questão. Uma campanha de um mês no ano destinada à causa não é suficiente.

Acredito que, assim como eu, muitas outras pessoas precisem recorrer ao Google para descobrir o significado das cores de cada mês das campanhas do governo. Setembro amarelo não é o suficiente. Nas escolas, o desempenho no vestibular ganha uma proporção maior do que a reflexão crítica sobre pontos nevrálgicos na formação do ser. A promoção de um pensamento criativo e propositivo entre crianças e adolescentes torna-se secundária diante da necessidade de produzir uma massa de trabalhadores carentes de conhecimento e postura crítica. Para mim, dia após dia, nós brasileiros deveríamos pensar toda ação com sendo política, pensando exaustivamente em nossos direitos e nas obrigações dos governantes para que, esperançosamente, o descaso político tenha consequências menos fatais.

*O CVV oferece ajuda 24 horas por dia, via telefone, Skype, chat, e-mail e presencialmente. Para mais informações, acesse www.cvv.org.br ou disque 141.

*Leonardo Roberto é estudante de comunicação

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