Por Luiz Renato de Souza Pinto*

No último dia 06 de junho foi lançado em Porto Alegre o terceiro volume da trilogia farroupilha, de Letícia Wierzchowski, vindo se juntar ao Casa das Sete Mulheres (2002) e Farol no Pampa (2006). Travessia narra a trajetória épica de Giuseppi, herói de dois mundos, que entre o Brasil e a Itália se dividiu em meio entreveros por aqui e por lá, no velho mundo. O protagonista é daqueles personagens que tem a vida entremeada por uma outra, a de Anita Garibaldi que recebe seu sobrenome de maneira a imortalizar-se como uma heroína tipicamente brasileira. A catarinense de Laguna vai-se com o marido para além-mar, o que corta o coração de outra moça que fica a esperar pela volta de seu grande amor, que não acontece. Pois assim sucede a Manoela, narradora do primeiro volume desta saga que agora se completa. Mas isso é assunto para uma crônica futura, após ler esse calhamaço que ainda não tenho em mãos e que fechará em minha cabeça a pesquisa de fôlego que alça Letícia a voos mais altos na produção de romances históricos em nosso país.

naveguealagrima-726x1024Hoje quero falar de outros três livros de Letícia que me deliciaram nos últimos tempos. O pintor que escrevia (2003), Navegue a Lágrima (2013) e Sal (2015). O primeiro, que tem o subtítulo de “Amor e pecado” fez parte de uma coleção da Record intitulada “Amores Extremos” e  dá um toque lírico a uma escrita feminina com identidade própria, forjada no íntimo de quem sabe transformar em texto verbal gestos sublimes encorajados pela força motriz de uma palavra vigorosa. Após a morte do escritor, sua obra que repousava em um quarto fechado de uma casa no campo é preparada para mudar de endereço e ser exposta em uma galeria europeia. Ao ser manuseada, descobre-se que atrás de cada tela pintada há textos que revelam bastidores de uma relação intrínseca entre a vida e a obra do pintor, revelando um outro poeta que pintava também com letras.

Intrínseca é o nome da editora que trouxe a público os outros dois volumes. Navegue a Lágrima eu li em dois dias quando estive em Ribeirão do Pinhal, litoral gaúcho no último mês de abril, dias antes de um Congresso sobre Decolonialidade e Direitos Humanos na Unissinos, em São Leopoldo. Escolhi essa cidade para conhecer pela leitura do último livro de Letícia, O primeiro e o último verão, que se passa nesse balneário. Depois ela me contou em Salvador que na verdade sua família tinha casa e frequentava sistematicamente a praia em Cidreira, município vizinho, que agora também quero conhecer. Mas nem só de Rio Grande vive o imaginário marinho de Letícia. Sua família, tendo casa no litoral uruguaio, sempre está no país vizinho desfrutando de suas maravilhas. E é em parte desse litoral que se passa essa história de amor que funde livros e imaginação com a condição humana e os recônditos da alma. Logo na orelha a editora nos apresenta o cenário:

Uma casa de praia, num idílico balneário no Uruguai, é o cenário de duas histórias de amor e perdas, separadas no tempo. Consumida pelo luto, a editora Heloísa escolhe se afastar da cidade e levar uma vida de isolamento na residência de veraneio que outrora pertenceu a Laura Berman, uma escritora consagrada (Wierzchowski, 2013).

thumbHomens, mulheres e livros. Boa parte das narrativas de Letícia Wierzchowski une esses elementos mágicos na construção dos discursos. Seu universo criativo envolve elementos da cultura polonesa, de sua descendência, do mundo rio-grandense, sua querência, e outros universos que são de qualquer lugar. Mas o tempo que mergulhou em histórias polonesas para escrever Uma Ponte para Terebin, como Os Getka, bem como as lendas polonesas que juntou em livro, em parceria com Anna Klacewicz, ecoa por outros labirintos de sua escrita. O romance Sal, por exemplo, dialoga com A história do dote de Santa Kinga (Wiano Swietej Kingi), publicada em O dragão de Wawel e outras lendas polonesas (Record, 2005).

Nesta narrativa, a princesa Kinga, filha de um rei da Áustria, está em idade de se casar e seu pai encontra para a filha um rei da Cracóvia que de pronto aceita a oferta e as bodas são marcadas. O pai da princesa quer dar a ela um dote especial para que oferte ao marido e ela  recusa joias e outras coisas fúteis por considerar excesso para um reino em que isso havia de sobra. Resolve dar a ele algo que fosse útil para o seu país. Pede para que os súditos cavem nos arredores da Cracóvia; ao chegar às profundezas e se deparar com uma pedra gigantesca pede que extraíam um pedaço da mesma e que tragam a ela. Eis o seu dote: uma pedra de sal.

E enquanto o rei Boleslau examinava a pedra que Kinga lhe entregara, confirmando assim que ela falava a verdade, que ele tinha sal em suas mãos, a princesa acrescentou:

– Daqui para diante a Polônia vai ter sal suficiente, e jamais precisaremos comprá-lo de outros reinos (WIERZCHOWSKI, 2005, p. 45).

salO romance Sal também se passa em terras uruguaias (Oedivetnom), norteados por um farol que marca a passagem do tempo (reparem que o nome do logradouro entre parêntesis, ao se ler de trás para frente revela o nome da capital uruguaia). Um mergulho na mitologia grega faz da construção arquetípica de suas personagens o que me referi aos personagens de Letícia em crônica anterior e que ela pareceu gostar: uma paleta de cores. Para cada um deles se escolhe uma e assim a leitura vai nos embaralhando nessa aquarela surreal que mistura sonho e fantasia ao universo mágico da escrita.

Se você está à procura de um autor/autora que ainda não conhece e busca uma literatura que não seja apenas inventiva, apenas bem escrita, mas que te proporcione emotividade, agora já sabe; tem nome: Letícia Wierzchowski. Ela sabe surpreender o leitor com seus achados e perdidos. Ainda não li o seu eu@teamo.com.br, em parceria com Marcelo Pires (o amor em tempos da internet), coletânea de e-mails com o futuro pai de seus dois filhos, mas ao terminar o Navegue a Lágrima, sabendo da história pessoal, é inegável estabelecer uma relação para além das letras ao lembrar de Heloísa, de Leon, e de outros personagens da obra.

O papel que Leon procurava era um antigo documento, necessário para tirar a cidadania portuguesa – o seu avô materno tinha sido um comerciante inglês que se radicara em Lisboa. Mas, ao invés de seguir com a procura, Leon ligou para o seu agente de viagens e pediu, com urgência, uma passagem para o Sul do Brasil. Rindo ao telefone, nervoso como um adolescente, ele percebeu que já tinha feito aquilo, exatamente daquele jeito, no escuro, anos e anos antes, quando tomara um avião para conhecer a autora do livro que lera e do qual gostara tanto (WIERZCHOWSKI, 2013, p. 185).

Não me interessa se a vida imita a arte, ou a arte imita a vida. A boa literatura vai muito além do que se possa teorizar. É abrir o livro, qualquer livro, e se deixar levar pela magia do faz de conta; por mais que a conta faça algo de mágico desaparecer.

17586569REFERÊNCIAS

WIERZCHOWSKI, Letícia. O pintor que escrevia. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 2003.

______________________. Navegue a Lágrima. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

______________________. Sal. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.

______________________. O dragão de Wawel e outras lendas polonesas. Rio de Janeiro-São Paulo, 2005.

*Luiz Renato de Souza Pinto é escritor, poeta, professor e ator performático.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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