Por Túlio Paniago Vilela*

 

Cuiabá. Setembro. Duas e quarenta e três da tarde. Temperatura: 41°. Umidade relativa do ar: 8%. Sensação térmica: inferno. Três cães estirados sobre o chão do coreto da praça Ipiranga. Um trio de vira-latas macunaimamente preguiçosos, dispostos a desfrutar da indisposição compartilhada entre eles. Poupam movimentos e permanecem estáticos. Quando muito, contorcem seus respectivos dorsos, quase se dando um nó, para lamberem cada qual o próprio escroto. No mais, as línguas, tais quais seus donos, repousam sobre o piso do coreto.

São cor de burro quando foge, provavelmente irmãos, herdeiros inglórios de um mesmo cão-cadela sem berço ou coleira que a todos pariu. Incestuoso gene libertino transmitido ao bando de caninos abandonados que perambulam por estas ruas, uma matilha urbano-rural sem teto-terra que os possa abrigar ou dar de comer. Estes três em especial, cujos ossos expostos revelam o violento descaso ao qual são submetidos diariamente, já desesperançados de saciar a fome, se debruçam em terrenos sombreados na tentativa de absorver pelo corpo o frescor da terra crua que há tempos fora coberta por cimento e asfalto.

De nada adianta. Transpiram saliva-suor e suas respirações ofegantes encharcam as línguas. O sincronismo de suas pequenas caixas torácicas parece uma dança: o balé da inércia em meio ao caos. Ao redor, alheios à existência dos cães, pessoas vêm e vão. Vão pra vir, vêm pra ir. Terceira conjugação do plural de um singular caminhar em vão. Os cães estação (do verbo estar-ser) alheios aos olhos que nunca os verão.

E vão continuar tentando amenizar o calor. Se pudessem se despir dos pelos, assim fariam. Como não podem, se estendem em chãos sem-terra cobertos por sombras de concreto. Raras são as sombras arbóreas. Quem dera uma copa frondosa para cada cão sem dono espichar sem culpa todo seu abandono. Não haveriam, assim, de se amontoar em coretos.

Contrastando a calmaria dos cães, a fervura da praça. Pessoas em ebulição. Óculos escuros não protegem do sol, mas escondem lágrimas salgadas que se misturam ao suor cotidiano. O pastel frita o pedestre com gordura humana. O asfalto faz malabares com os pés descalços do malabarista. Um artista da fome tira som de panelas vazias. Um homem se consome em chamas. O incendiário é preso por perturbação da ordem e sossego público. Uma mulher possessa de calor arranca os cabelos com as próprias mãos para ventilar a nuca. Um picolezeiro, entalado pela barriga, tenta desesperadamente uma forma de caber no carrinho. Carros e vidraças de prédios são como lupas a cremar formigas. As formigas invejam as cigarras. E as cigarras queimam suas asas de cera ao se aproximarem do sol. Aqui vinagre se mata com sede e com fogo se apaga o álcool. Há menos humanidade do que umidade no deserto que nos habita. Olhares cerrados, almas em pântanos. Não há deus ou diabo que ouse pisar na terra do sol entre agosto e outubro.

Porém, em meio ao caos, os cães. Depois de longos minutos dormindo, entregues integralmente ao balé da inércia, um deles levantou bruscamente a cabeça. Algum barulho ou movimento chamou sua atenção. Orelhas em pé e olhar vidrado rumo ao nada por alguns segundos. De repente virou o pescoço de lado e as orelhas se assentaram. Então bocejou tranquilamente, esticou as patas o quanto pôde, se contorceu todo, deu uma bela lambida no saco e, mudando de lado para refrescar um pouco, se esparramou novamente sobre o chão cuja temperatura é um pouco mais amena do que a ambiente.  Os outros dois se mantiveram fiéis à coreografia.

 

*Túlio Paniago Vilela é jornalista, escritor, da cidade de Mineiros, e vive em 
Cuiabá desde 2010.

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