A mil quilômetros de Istambul, dez moças e rapazes brincam no balançar azul turquesa do Mar Mediterrâneo. As cinco meninas órfãs são irmãs e se parecem muito, também. Lale, Nur, Selma, Ece e Sonay moram numa vila rural no interior da Turquia, e comem maçãs despreocupadas na volta para a casa da avó que as cria desde a morte dos pais. Provavelmente não sabiam que a felicidade e a liberdade são pecados nas religiões fundamentalistas. Caminham com graça – cinco graças, mais precisamente – para dentro de uma armadilha: o que era lar se transforma em prisão.

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Iniciadas numa “fábrica de esposas” – expressão que a caçula Lale utiliza -, as cinco por algum tempo aturam as atividades enfadonhas que lhes são impostas: cozinhar, dobrar roupas e uma infinidade de tarefas da casa. E então o filme assume sua vocação coletiva: se nega a explorar em profundidade as personagens, porque já lhes atribuiu uma significação como grupo que é maior do que qualquer individualidade. É a força que a união adquire quando bem sedimentada, no que tange também – e principalmente – ao empoderamento feminino. O casamento é outra instituição social abordada de forma peculiar: atua como uma ferramenta para separar o grupo, já que na maioria das vezes é arranjado pela família e imposto às mulheres.

Mustang, da jovem cineasta Deniz Gamze Ergüven, foi traduzido no Brasil para “As Cinco Graças”, e a necessidade dessa mudança traz consigo uma perda de expectativa/significado do filme: antes de ser um modelo de carro, Mustang é uma raça de cavalos selvagens. Uma raça forte, sem dono, de crinas (ou seriam cabelos?) longas e esvoaçantes numa espécie de ode à liberdade e ao direito de ser dono de si próprio, e mais ninguém. Fica fácil notar a ligação entre roteiro, imagem e nome porque este já fornece um caminho semiótico para análise da obra.

Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, Mustang venceu mais de 40 prêmios mundo afora, inclusive nos festivais de Cannes, Chicago, Seattle, Hamburgo e EFA, e atua como uma resposta à vigente postura política do país e do presidente Recep Tayyip Erdogan, conivente e mesmo apoiador da repressão e subordinação das mulheres, vistas apenas sob um prisma sexual, reprodutivo e inferior.

Como reforço e corroboração da crítica, a diretora insere entre a trama e suas camadas de significado trechos reais de noticiários turcos que revelam o posicionamento retrógrado da mídia tradicional em questões que envolvem religião, mulheres e liberdades de direito, usando a realidade como prova da própria degradação.

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Escolhida para ser o fio condutor da história, a irmã mais nova Lale, interpretada magistralmente por Günes Sensoy, tem função primordial no modo como a história é contada porque distancia-se dos principais embates familiares e seu olhar revela atos e ângulos importantes para a compreensão do todo. Sensação essa muito bem explorada pela fotografia no que diz respeito à planificação e movimentos de câmera.

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O filme é ótimo mas nem tudo são flores, não é? Bem-sucedido na intenção, mensagem e imagem, Mustang peca perceptivelmente em algumas ligações de roteiro, passagens de tempo precipitadas e falta de fôlego e ritmo no desfecho da história. Por mais que seja ácido e bem produzido, essas observações não passaram despercebidas pela crítica internacional, que em algumas ocasiões colocou em dúvida o merecimento do filme à indicação ao Oscar.

“Filmar é minha ferramenta, é como eu modifico a mente das pessoas para fazer algo. É como eu participo.” disse a jovem diretora Deniz Gamze Ergüven ao jornal The Guardian. O longa, escrito em parceria com a francesa Alice Winocour, é resultado do período em que as duas eram as únicas mulheres na turma da Fundação Cannes Film Festival, e reflete a necessidade da democratização de oportunidades e igualdade salarial entre os gêneros no cinema e em quaisquer outras esferas. Vale a pena dar uma chance ao filme que, embora não sendo perfeito, revela no interior de si mesmo a delicadeza do sonho, a brutalidade da vida e a valente determinação da esperança.

 

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