Por Arthur Santos da Silva

O fim do mundo é recorrente, talvez fixo num ponto do círculo. Meu caso, o primeiro foi quando descobri a morte de minha mãe. Não poderia ser filho de quem pariu meu pai. Era tarde e gente visitava nosso sítio, bem pequeno, com uma casa de madeira. Perguntaram em minha presença, sentados enquanto bebiam coca-cola, como eu agia sem ela.

Só assim eu percebi a morte. Bem verdade, tentei imaginar uma mulher. A primeira mulher. Coisa que tento imaginar ainda hoje. Uma linda mulher. Reagi naquele dia que era frio procurando o colo do meu pai e da minha mãe avó, os dois sentados feito cadeiras de fio.

Dor foi um desconforto e como um muro caindo, faltava um canto secular para tapar buraco. Mas neste mesmo lugar, no mesmo frio, eu percebi um pouco do prazer da natureza e da solidão. Era um terreno grande, com várias árvores mangueiras velhas, o chão era preto de terra, com muita folha e um cachorro chamado preto, como a terra.

Assim eu me aproximei de algo essencialmente pessoal. A primeira imagem como memória que tenho do meu corpo feliz nasceu no Sítio Pajeú. O nome Pajeú também é um rio que cruza parte do Nordeste. Na data gostava muito de uma camiseta vermelha cruzada em branco.

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Foto: Sebastião Salgado – Construção do Canal de Rajastão

O segundo fim do mundo, quando minha mãe morreu pela segunda vez. Um beijo a minha avó, minha mãe. Doente, depois de velha, a morte foi esperada. Mesmo a morte esperada é um pouco de dor. Certamente por egoísmo de quem permanece, a morte é dor.

Ela morreu enquanto eu ouvia uma música sobre Iemanjá, a rainha do mar. “Dia 2 de fevereiro/ Dia de Iemanjá/ Vá para perto do mar/ Leve mimos para sereia, Janaina, Iemanjá”. Dia 2 de fevereiro foi quando ela nasceu, num ponto do círculo em Pernambuco, depois se casou com meu avô, um homem que fumava, cuspia no chão e pouco falava comigo. Mas ela viveu e morreu como uma flor feminina.

No fim de minha segunda mãe aprendi algo sobre ser um jovem estereótipo latino-americano. Triste, viajei com um Toyota velho dirigido por meu pai e guiado por meu tio, João. Ida e a volta, entre Bolívia e Peru, eu com 17 anos. Viajamos para tentar esquecer a mulher que ainda existia. Continuará existindo como lembrança de um cheiro de pele ajuntado com outros detalhes.

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Foto: Sebastião Salgado – O Sal da Terra

Sobre a viagem, difícil foi entender-me como um brasileiro massacrado por desejos que não são meus. Latino-americano sem um determinismo geográfico, mas recheado por imagens clássicas feito o imediatismo publicitário. Pequenas Cholas com seus vestidos e rostos semelhantes me surraram num território andino que expele. Senti certo nojo em ser superfície rasa. Planície que ainda existe.

Depois das mortes, o ponto do fim do mundo no círculo seguiu se repetindo. Seguirá, espero. Tantas coisas recentes ainda se arrastam, como a ida de meu pai que hoje enxergo somente ao longe. Além das memórias arrastadas, rupturas produzem dor. “Vestimos panos de medo”. Pergunto-me quando plantarei meu próximo pânico. Quem colocará dinamite em minha cabeça?

Dias últimos conheci parte de minha primeira mãe. Conheci ainda uma terceira mãe que amo. Custo dizer amor por ser uma palavra. Terceira, que feito primeira e segunda é total. Gosto, gozo e tudo que pujante é. É amor antes de palavra.

Minha terceira mãe, jovem e inconsistente, ainda deixarei um eterno símbolo de gratidão sobre seu estado. Que seja feito sem esforço. Difícil é contar sobre o que ainda existe recente. Fins de mundos seguirão como mães. Serão sempre mães os encerramentos. Algum dia continuarei sobre a quarta, a quinta e todas as outras, até que o encerramento seja decretado e eu vire mãe em processo de decomposição.

— Bença mãe.
— Deus te faça feliz – diz o fim do mundo no mês de agosto.

Arthur Santos da Silva é paraibano, historiador e jornalista.

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