Aquele era um cavalo bom.
Comprei com miséria num fim de baile em Acorizal, o dono bebeu que até tremia e tinha os olhos estourados e um bafo temperado com lascas de cebola crua. Acabei na mesa dele pra descansar depois de umas danças com a menina da fazenda que não gostou do jeito que apertei a cintura dela, que tem menina que gosta e menina que não gosta e prefere mão mole de moleque e dessas não faço caso. Ele falava e se interrompia nuns soluços que balançavam os botões, e desenhava com os dedos na poça que sustentava os copos de cerveja. Disse que tudo ia mal, homem tem é jeito pra cuidar de bicho e pra tratar de dinheiro, na casa quem manda é teta e racha, e se fosse astuto tinha se preocupado em rezar mais nos domingos pra vir menina que só veio homem um atrás do outro e um mais vagabundo que outro e agora não encontrava remédio a não ser vir ali caçar coisa boa. Mas mulher boa não vinha ali e do jeito que ele falava e olhava e agia nem menina lascada dava trela. Ele parece que adivinhou o que eu pensava e se debruçou em cima da garrafa, limpou a coriza com a costa da mão, olhou pro sanfoneiro lá no palco, olhou pra mim de novo, os olho encheram de água e falou Maria duas vezes bem baixinho antes de encher o copo, virar no golote e dizer que eu era cabra bom e vendia o cavalo que eu queria por merreca.
O bicho tinha faro manhoso e aprendi a deixar ele guiar. Na rota ignorava certas cidades com veemência, e vila que nunca fiz questão cabeceava pra lá, os panos de índio nos alforjes. Entrava naquele trote treinado, o chanfro de um lado pro outro, as orelhas bem empinadas que sempre achei que fosse algum canto no vento, alguma coisa que Deus ou alguém muito mais justo e pequeno soprava nazoreia dele. Era batata. Eu descia, batia na porta pendurando o sorriso no cabide dos beiço, abria o pano, mostrava a resistência, a textura, a complexidade da trama, os desenhos, arrematava com um preço que chorado sempre caía no que eu queria e saía com o bolso risonho.
Acostumei com a vida mansa que só existia nas histórias do padre, e sem aquilo de perdoar todo mundo que troçou da gente. Eu achava mesmo que isso era lorota porque se alguém tivesse de fato conseguido tava bom de ter o nome socado na bíblia e nunca vi bíblia mudar de tamanho. O tempo que eu gastava convencendo gente que não se dobra gastei nas tendas e nas maçãs, e nós dois juntamos umas carnes e o osso ficou mais difícil de ver e era coisa boa, que antes dele pra acontecer isso só se eu voltasse e abaixasse a cabeça e desafogasse a mágoa na estância e se fosse pra fazer isso nem tinha saído.
Eu já tinha um punhado de cabelo branco quando ele desembestou a cavucar o chão com os dentes, abocanhando terra e cuspindo. Enfiei a mão no buraco e achei um osso. Era de vaca ou cavalo ou outro animal de grande porte, carcomido nas pontas. Ele cheirou, fungou e lambeu aquilo e depois disso saiu da rota, trotou noutra direção. Eu puxei a rédea, gritei. O bicho não virava. Peguei uns ramos grossos, nunca precisei dar nele, quem sabe era hora. Dei no corpo todo, ele não mexeu. Sovei a cara do coitado, a nuca, as bochechas, o chanfro. Nem piscar piscou. Quando vi um filete de sangue escorrendo larguei os ramos e abracei ele, mortificado. Me carregou tantos anos pra fartura. Por que haveria de querer meu mal? Montei e deixei seguir.
o absurdo entra tão solene que inspira o sujeito a ler entrelinhas cavalgando destino torto, troncho, acumulando vespeiros…