Por Odair de Morais*

Cuidei do carro dos bacanas que iam chegando pra festa na faculdade.
“É três pilas”, eu dizia e dava as costas, enquanto iam descendo dos autos.
“Só pra olhar?”
Choravam de barriga cheia.
As damas, de cabelo escovado, traziam na cara mais pó do que uma baronesa.
Dava pra ver algumas ainda guardando o cartão de crédito na bolsa.
Fingia que não tinha ouvido nem visto.
“Cuidado com a lama”, eu alertava.
“Mentira! Tou brincando”, eu dizia sorrindo.
“O pagamento é adiantado, senhor”.
Todo ano era assim.
Como colocavam uma catraca no portão de entrada da universidade, junto à bilheteria,
o jeito era largar a carruagem no bairro e rezar pra não ser depenada pelos pivetes.
Meio contrariados, os granfas iam enfileirando os carangos na rua.
Temendo um prejuízo maior, como ter um pneu furado ou a pintura da limusine
danificada, acabavam concordando com a mixaria que desembolsavam.
“Nada mais desagradável do que ter que trocar pneu de madrugada, né não,
meu patrão?”, eu provocava. Mas não arredava o pé enquanto o último motorista
não voltasse, no fim da festa.
Aquela noite, em menos de oito horas, tinha feito sessenta e nove contos.
Quase o triplo do que ganharia por um dia inteiro de trabalho qualquer empregado
que recebe salário mínimo em carteira assinada.
Contei e recontei a grana.
Desamassei e pus as cédulas em ordem da direita pra esquerda e da esquerda pra
direita umas trezentas vezes pra passar o tempo.
Grazi veio me trazer uma xícara de café quente.
“São mais de três horas, preto”, ela disse, enrolada num cobertor, por causa da
friagem.
“Não quer mesmo que eu traga uma cadeira?”, perguntou ao ver-me sentado na quina
da calçada. “Se quiser, eu busco ali na casa da tia.”
Nos anos anteriores, ela trabalhara sozinha na rua, aguentando inclusive a
gracinha dos tipos mais abusados.
Fazia pouco tempo que a gente tinha ido morar na mesma casa.
A urina desceu de carreira lambendo o meio-fio.
Terminei de me aliviar, e disse: “Toma”.
Deixei o carvão na mão dela, que depositou ainda mais esperança em mim.
Ali ela pode ter certeza que encontrara de fato um companheiro.
Desconfio que o amor daquela noite foi até mais gostoso por causa desse meu gesto…
Nunca acreditei que fosse fazer aquilo por causa de uma buceta.
Vários conhecidos de minha mãe passaram por ali e me viram na viração de
guardador de autos.
Comentariam depois com a velha, só pra humilhá-la.
Certamente não era pra acabar daquele jeito que ela tinha investido tanto
dinheiro em colégio caro…
Quando o último almofadinha puxou o carro, fomos andando em direção à quitinete.
A rua deserta me deixou excitado.
Aproveitei pra dar uns amassos.
Quando soquei a mão por dentro da calça, Grazi me disse entre beijos:
“Para, a gente já está quase chegando!”, e me alisou por cima da bermuda.
Um bêbado moscava, esparramado na calçada de casa.
Grazi sorriu ao me ver caminhando, pé por pé, na direção dele.
“Não acredito que você vai fazer isso, preto.”
O velho babava.
Sacudi e disse: “Ei, amigo.”
Mandei ele ir embora: o velho nem se mexeu.
Dei dois tapas na fuça dele, que virou de lado, mastigou um palavrão e voltou a
dormir.
“Pé de cana da porra! Não acorda nem na base da paulada.”
“Revista ele.”
O velho tinha uma naifa enfiada no cós da calça, sob a camisa.
“Essa corta até arame farpado”, eu disse.
Esvaziei os bolsos do cara.
“Cê trabalha, preto. Não precisa fazer isso.”
“É pra segurança dele”, eu disse, jogando a carteira no mato.
Olhei a bicicleta encostada no meio-fio.
“Se deixar a magrela dele aí, alguém vai acabar levando.”
“Encosta ela ali no muro”, sugeriu. “Ali ninguém mexe.”
O velho dormia que nem um bebezinho órfão.
“Amanhã ele ainda vai agradecer a gente ter guardado a bicicleta dele.”
Entrei em casa e calculei mentalmente a féria daquela noite.
Quem diria? Fiz até serão.

*Odair Morais é poeta, escritor e professor

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