Por Túlio Paniago

Observava as rugas como quem fita um mapa. Um mapa tão abarrotado de códigos e legendas indecifráveis que embora o espaço físico lhe fosse milimetricamente habitual, este emaranhado de novas informações atordoava sua geografia pessoal. Sentia-se despertencida (como uma palavra que não pertence ao vocabulário) de tempo e desnorteada (como uma bússola sem agulha magnética) de espaço.

Procurava por si mesma na imersão de seu mapa facial. Linhas escorriam dos olhos como fossem canais secos por onde fluíram leitos lacrimosos. A estranheza deste pensamento lhe franziu a testa e, simultaneamente, a luz que invadia o vitral minguou. Também pudera, pensou, este franzir transmite penumbra ao olhar. Tal reflexão trouxe à memória o sorriso largo que lhe iluminava e ruborizava a face, mas que há tempos deixara de ser frequente. Então vislumbrou, naquele efêmero instante nostálgico, um pretexto ideal para revivê-lo. Porém o contrair das bochechas ao esboçar o sorriso, somado a um inevitável olhar desesperançado, compôs um impassível – e ao mesmo tempo atônito – semblante.

Engoliu em seco. Envolveu o pescoço com as mãos de modo que os punhos se tocassem abaixo do queixo. Logo as fez deslizar em sincronia até que os dedos se cruzassem na nuca. Estática, constatou uma proeminente flacidez muscular. Suspirou. Em seguida uniu as mãos lado a lado sobre a pia e se debruçou sobre os braços, mantendo-os esticados. Dos pulsos, diante do espelho, saltavam veias roxas. Ao se inclinar um pouco adiante, os ossos do ombro se sobressaltaram e os seios foram levemente comprimidos pelos braços. Manteve-se nesta posição durante algum tempo, analisando mais de perto os traços em seu rosto tal qual uma vidente observa as linhas de uma mão (Dizeres do passado e do futuro em xilogravuras corporais).

Após alguns minutos abriu a torneira e se lavou com muita força, como quisesse limpar as marcas permanentes do tempo. A água, cuja natureza resiliente e fluída lhe permite percorrer e adentrar todas as miudezas da epiderme, carregou consigo as impurezas que ali se acumulavam: resquícios de maquiagem, fuligem, poeira e sal. Sal da terra de seus olhos. Sal de lágrimas transbordantes de passado e represadas de futuro.

Sentiu, enfim, o respirar da pele pelos poros. Entretanto, agora, com a face absolutamente limpa, os efeitos irreversíveis do tempo eram ainda mais explícitos. Cada ínfima ruguinha era visível na geografia de sua pele. E todos estes pequenos canais afluentes pareciam confluir na bacia de seus olhos, que, novamente, ameaçava transbordar.

Engoliu em seco. Saturou de espelho. Sentou no vaso, assentou os cotovelos sobre as coxas e união as mãos entrelaçando os dedos. Olhava os azulejos pensando em sentimentos sem vazão, atos passados, planos futuros, intermitências presentes… Tantas imagens aleatórias povoavam sua cabeça que caso fosse necessário exprimir em palavras, diria pensar em nada.

Então se dirigiu ao box e ligou o chuveiro. Temperatura mais quente. Num instante o vapor d’água inundou espaço e tempo. Rabiscos de outrora se desnudavam no vidro embaçado. Deslizava o sabonete vagarosamente pelo corpo enquanto solfejava uma canção tão distante que a própria memória hesitava. Roçava os dedos entre os fios de cabelo, pacientemente, retirando aqueles que haviam se desligado do couro cabeludo. Por fim mergulhou o rosto no feixe de água e assim permaneceu. Se pôs a respirar ofegante, como se lhe faltasse ar para tantos pulmões. Nada mais represava sua cabeça, houve vazão. Descansou os olhos enquanto o fluir do tempo sobre o corpo se fundia com o da água. A inconsistência do ser a liquidificar a existência. Sentia como se o passar do tempo se esvaísse pelo ralo.

Túlio Paniago Vilela é jornalista, escritor, da cidade de Mineiros, e vive em 
Cuiabá desde 2010.

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