Por Luiz Renato de Souza Pinto*

O clima em todo o país é de certa consternação com os fatos alarmantes que têm vindo à tona desde algum tempo. Como professor, fico mais preocupado do que com meus outros lugares sociais de artista, escritor, ator, uma vez que acredito piamente que a mudança acontece pela educação. Trabalhando com meus alunos de terceiro ano do ensino médio sobre o Pré-Modernismo, período de transição em nossa literatura, procurei, à luz dos ensinamentos de Piaget, fazer com que a aprendizagem fosse significativa. Escolhi como texto para uma das aulas a crônica (acredito que o gênero é ótimo para formar leitores) de Lima Barreto, intitulada 15 de Novembro. E assim pude dissertar brevemente sobre a visão do escritor sobre os caminhos e descaminhos da república em seus trinta e dois primeiros anos de existência. O texto é de 1921, um ano antes de seu falecimento. Barreto quase ao fim do texto lembra a repercussão da festiva data nos jornais da época, que lia nas vendas, provavelmente enquanto adoçava o paladar com alguma dose para esquentar-lhe a palavra.

limaQuase todas elas estavam cheias de artigos e tópicos, tratando das candidaturas presidenciais. Afora o capítulo descomposturas, o mais importante era o da falsidade. Não se discutia uma questão econômica ou política; mas um título do Código Penal. Pois, é possível que, para a escolha do chefe de uma nação, o mais importante objeto de discussão seja esse?

Não é difícil imaginar porque muito se fala diante do quadro atual que eram bons os tempos da ditadura, que a Monarquia podia voltar, veja o caso da Inglaterra, e coisas do tipo, legítimas até, enquanto opinião de quem não vivenciou algum tipo de drama, exclusão, repressão física ou qualquer outro tipo de imposição (além de medidas provisórias). Alguns livros de ficção apresentam aos nossos olhos a Proclamação da República de maneira idealizada, ou crítica, de acordo com a estética dominante e os objetivos do autor. Destacaria, a título de exemplificação, O Cortiço de Aluísio de Azevedo e Esaú e Jacó, de Machado de Assis, obras canonizadas pela crítica especializada e partícipes dos compêndios literários que se reproduzem nos bancos de escola, muitas vezes sem que seus professores os tenham lido de maneira adequada. Os que se enquadram nesse comentário adoram as fichas de leitura que algumas editoras ainda trazem como suporte para os leitores de fim de semana.

livro-o-baile-da-despedida-josue-montello-d_nq_np_13702-mlb3682621869_012013-fMas quero falar de outro autor e de dois de seus livros. Josué Montello, nascido no estado do Maranhão, em Noite sobre Alcântara e O Baile da Despedida, nos apresenta um retrato do que foi a pompa e a decadência do regime monárquico que nos atirou à Guerra do Paraguai, que foi omisso em todos os movimentos insurgentes que buscavam a melhoria de vida de nossa população menos afortunada; que massacrou os cabanos, os balaios, os farrapos e outros insatisfeitos por uma bandeira ou outra ao longo do século XIX. Estive na Maranhão no final do ano passado. Fui conhecer Alcântara, a uma hora de barco da capital, lugar aprazível que possibilita uma viagem no tempo. Lendo agora o romance, pude me enxergar nas ruínas de sua matriz, compreender a contenda entre cabanos e Bem-te-vis que disputavam o poder local e as honrarias de receber o Imperador em seus idos anos de venturosa economia; de conhecer aquele ambiente decadente descrito de maneira magistral por Montello nessa preciosidade literária desconhecida da maioria dos leitores com menos de quarenta anos. Eu mesmo possuo esse livro há mais de vinte anos e somente agora abri suas páginas para o deleite garantido. Mas cada livro tem o seu tempo. Outros me aguardam pacientes na estante e são ultrapassados por outros, vez ou outra.

O Baile da Despedida li já faz uns vinte anos; quando escrevia meu primeiro romance Matrinchã do Teles Pires. A suntuosidade da Corte é realçada em meio à chegada da nobreza parasitária que vai à Ilha Fiscal para o último baile antes do acontecimento da proclamação, em 15 de Novembro de 1889. O adeus à monarquia se dá em meio ao luxo em que o esteta maranhense mergulha para escrever páginas belíssimas da literatura brasileira, embora isso não tenha sido suficiente para garantir lugar de destaque entre os compêndios que o cânone estabelece à mercê desse ou aquele interesse de algum grupo editorial, acadêmico ou institucional. É bom frisar que Montello foi membro da Academia Brasileira de Letras que o inspirou a escrever um Pequeno Anedotário da Academia Brasileira de Letras.

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Josué Montello

Defensor de que a anedota, junto aos temas nobres da história, é importante para a construção de uma identidade nacional, Josué Montello satiriza os bastidores da vida acadêmica nacional em algumas crônicas bem humoradas, como por exemplo, acerca de José do Patrocínio, à época da abolição,  e de como reagira ao saber de um texto de Silva Jardim sobre uma crônica de Coelho Neto, também maranhense. Diante da indignação de Jardim, teria dito Patrocínio:

– O homenzinho entende que sou infame, não o tiremos dessa ilusão. Olha, eu não disponho de mim, não me pertenço. José do Patrocínio não é agora um homem, é uma causa. Que me insultem à vontade. As injúrias não abalam o motivo que represento.

(…)

– Não. Tenho melhor assunto. Vou escrever um artigo sobre o quilombo do Jabaquara. Não abandono o meu roteiro.  Logo agora que estamos chegando ao fim! Esses republicanos… Que rosnem, que vociferem. República numa pátria escrava? Que contra-senso! Tenho mais que fazer…

E daí a pouco, à mesa da redação, debruçava-se sobre as tiras de papel, para escrever o seu artigo (MONTELLO, p. 132).

A república tem seus heróis aos montes. Olavo Bilac é um deles. Mas nem o autor do hino da independência, modelador de almas cívicas, adestrador de infantes com as bandeiras republicanas escapa ao chiste de Montello no Anedotário.  Em soneto escrito em São Paulo, em 1887 e refundado no Rio de Janeiro em 1895, de acordo com o cronista, imortalizou inspirada em uma viúva do período este soneto com o qual encerro este texto:

Domingo. Chove. Como é triste a chuva!

Como é triste e monótono o domingo!

Ouço a chuva cair de pingo em pingo…

Ah! Se chegasse, pálida viúva!

Sonho que chegas: livro-te da capa;

Todas as vestes úmidas te arranco;

Como de um ninho, o teu pezinho branco,

Da bota, como um pássaro, se escapa…

Bátegas de água, trépidas, lá fora.

Tremes de frio, entrechocando os dentes..

Rufam nas pedras, encharcando a rua!

E, dos meus lábios, trêmulos, ardentes,

Outra chuva te cai, quente e sonora,

– Chuva de beijos – sobre a espádua nua.

Josué Montello faleceu em 15 de março de 2006 e neste ano de 2017, aos vinte e um dias do mês de agosto completaria cem anos – viva o seu centenário. Comemore lendo algum de seus muitos romances que ajudam a compreender que país é este de que tanto nos falou Renato Russo.

*Luiz Renato de Souza Pinto é professor, ator, poeta e escritor, 
além de botafoguense.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

2 Comentários

  1. Bacana a crônica, li O baile da despedida uns anos atrás e me encantei com as imagens que o autor produziu. Obrigada pela lembrança deste livro! <3

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