Diário de bordA: Carta de aniversário a Daniel Lester

 Por Carole B. *
Já não sei de onde falo mas sinto frio, domingo de 2015 d.C.
Querido Daniel,

Anteontem reencontrei, por acaso, o seu compasso. Foi no centro da cidade, perto do moço indistinto que lia jornal de peito aberto no cruzamento das pressas. Senti falta desse ritmo, suas ternas divisões, feito bicho que suspira desejando acelerar. Da última vez que perguntei você me disse estar tudo ‘mornal’. Achei trágico e genial. Há momentos em que apenas inventar belas palavras nos permite descrever as piores sensações. Hoje acordei com vontade de chorar. Ou foi a vontade de chorar que me acordou? O espelho deserdou quando as clavículas saltaram. Saudade não é nome: é condição! Os feriados são domingos fora de época que fazem explodir de contenção meu coração; quando o suposto feriado cai em um domingo, então, a queda é clara – quanto mais lento e mais longo, mais sombria e pesada… Por isso escrevo; para pedir a sua mão e oferecer-lhe a minha, gelada, quase descascando – mas ainda capaz de aquecer um velho amigo. Tantos anos de convivência, creio, permitem que nos alcancemos à distância – e contudo, esqueci de mencionar o que deveria ser o principal motivo desta carta: seu aniversário!

4a9e506d63550a8af2c898f96fba6927Após vinte anos de intimidade transformadora ainda ostento, como quem cultiva cistos, o meu ego pueril – me perdoe! É que realmente não sei me iludir – embora sonhe em aprender a fazê-lo; certamente dói menos, ainda que uma ilusão só se prolongue no intervalo do exato imediato, enquanto a realidade preenche todo resto com surdez e música. A verdade é uma careta no reflexo – para partir uma ilusão, um espelho inteiro basta. Por isso, admito: quando escrevo para alguém, a mensagem é para mim; e as respostas que preciso às vezes chegam até antes da posição do remetente. O papel tem poder, Daniel. A resposta é gerada no vacilo das fibras, no aroma indivisível de madeira, cloro e cola, na toxidade santa que interdita o esquecimento. É assim, companheiro, que a memória nos destrói: nos impedindo de ruir. E as respostas só resolvem quando trazem outras perguntas. As cartas são – ao mesmo tempo – universais, confessionais: revelam o que se esconde, mas não dizem onde está. Escrevo para você buscando me entender; espero que consiga se entender ao me ler. Tentaremos nos decifrar sem que seja preciso devorar-nos – aos poucos – suave e denso – como amigos recentes – ou a esfinge sem futuro. Compreensão, meu querido, é alcançar, enfim, a dúvida.

Haverá de ser forjada uma pílula – ou uma capa – que nos proteja do fruto das noites estéreis! Pois quem ousar trilhar a ecologia da alma humana tão logo atestará que existir é insustentável. Eu sei, você disse: a geladeira pifou, o carro quebrou, a televisão descoloriu-se sem aviso… só a sua pilha ainda não arriou – mas Deus é lúdico, fez do céu seu tabuleiro. A graça do humano é funcionar mesmo que falhe; é prosseguir, ainda que deseje ardentemente congelar. Não existe erro; existe acertar fora do alvo. É preciso aprender a suportar a eternidade – e para isso, há somente o tempo escuro de uma vida que se acaba. Os imortais, Daniel, são os primeiros a morrer. Não me atrai ser imortal: prefiro ser vital.

relogio-500x334Você aspira à mudança, mas sempre se assusta quando perde o seu relógio. Ora, aceite que existe um espaço onde somos puríssima impotência – isso é poder! Não se culpe pelo seu desconforto, pelo seu câncer, pelo seu enjoo diante de tamanha superfície – o abismo é justamente essa dor de não passar jamais do chão. Atire-se, amigo! Minhas mãos irão contigo – como pontes de afeto – porque NÃO: não é possível guiar um descaminho. Não controlamos quase nada – e isso é bom: só quem está sob controle aprende a controlar. Nós nos entregamos, porque ser livre significa não estar solto. Exatamente na entrega é que reside o inexato e inexiste a autoridade. Só o que não se deixa ir é necessário segurar. Entregar-se é o oposto de ser frouxo e por isso os que se entregam não serão aprisionados. O amor, Daniel, vai avançar no contrafluxo, feito luz de bicicleta. O amor bate de frente, sem os luxos de um socorro. E o amor vai persistir, mesmo que lhe quebrem as pernas.

Companheiro, não desvie seu foco dos pensamentos desviantes! O mundo precisa da nossa sensibilidade, assim como nossa sensibilidade precisa do mundo insensível. Não, não são disposições complementares: são contrários que disparam, dolorosamente, numa mesma direção – não colidem e sai faísca; não se olham, mas se mapeiam; não se tocam, mas se percorrem. O segredo é deixar os mortais morrerem e seguir morrendo. Você completou trinta e quatro anos anteontem; mantenha isso em mente, apenas para lembrar-se que poderiam ser dezoito. Somos o que fomos e o que jamais seremos. Desde sempre, até nunca. Não existe passado, presente ou futuro; tudo o que temos é o tempo que perdemos e a crueza das horas incitando esperanças com uma faca sem fio – fere e arranha, sem cortar – e assim vai fundo.

carataDo zero aos trinta-e-cinco, dos vinte aos cinquenta-e-nove: o que existe, de fato, é o menos-um. A cada passo adiante, voltamos dez casas. ‘Ser jovem’ não é algo que se acaba; o velho está cansado porque envelhecer é carregar, na caminhada, acumuladas juventudes. Não, não é pessimismo; é fé genuína de romeiro que sabe: Deus sempre acerta, mesmo sem existir. Só há um caminho, e é para o infinito; todo resto é o pensamento a perseguir a conclusão. Deixo que ele avance – até que um dia se dê conta: a própria busca não tem fim! – mas não o sigo. Pois esse desencontro entre tônus e razão é o que gera a poesia – a poesia reconcilia a direção com o ilimitado. O delírio é a matemática essencial do visionário. A poesia sequestra a obediência do silêncio. Para o poeta, silenciar não significa calar-se, mas gritar fora do som. Acabou-se, acabou-se minha vontade de chorar e agora eu canto. Até.

Cuide-se apenas o suficiente, não morra de tanto convalescer – a doença é a transversal da cura. Se as máquinas de viver se esvaíram, lembre-se do café, substantivo saboroso. Se o mundo é injusto e triste, pense no quão democrática é a Natureza, que mata a todos sem nenhuma distinção. Quando for acometido por aquela inevitável solidão de hipermercado, busque dentro de si o cabaré verde de Rimbaud e sinta o queijo suculento derretido nas palavras. Eis o cotidiano mortal, sem o qual não se vive! – aliás, deveria haver um curso de reeducação compulsiva para pessoas moderadas. Porque a razão não evita o sofrimento – jamais!; racionalizar é apenas uma outra forma de sofrer. Mas… é preciso ter cuidado ao descuidar-se! Sabedoria e alienação são dois lados da loucura – e se você entende isso, caro amigo, é porque não enlouqueceu. Ainda.

Um beijo afetuoso!
E feliz aniversário, a pesar nos pisares.

Com amor,
C.

P.S.: esta é uma obra de fricção.
*Carole B. é poeta e mora no Rio de Janeiro

2 Comentários

  1. Carol brinca, passando intensidade nas palavras, q são frias, conseguindo juntar emoções antagônicas, numa poesia de harmonia dos sentimentos….
    Sou sua fã.

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