fauno guazina*

“vivo sou teu chicote, morto sou tua morte”

no barro que me moldaram esqueceram da aparência de porcelana que me faria liso e aceitável, até decorado para o mundo agradar. seria eu aquelas peças com pequenos defeitos, vendido mais barato nas lojas do capitalismo patriarcalizante, alvura burguesa? seria eu o refugo quando não me adapto aos padrões de finura da estética mundana?

quando pressuponho a minha criação, minha forma e forja, visualizo as incongruências da linguagem que insiste em afirmar meu corpo, como se de alguma forma eu existisse para além desta corporeidade. nessa presunção criativa deixo de entender que o eu corpo é em si e em mim eu mesmo, não há para onde fugir, por isso, sistemas restringem, anulam, embranquecem, torturam e matam. me virtualizo para negar minhas narrativas enviesadas, ao invés de atuar no campo da aceitação e resistência.

dilema de libertação, alvedrio, arbítrio, como se algo disso existisse no concreto da realidade. livre é o conceito mais abstrato vendido de forma banalizada para o divertimento das massas e empoderamento do ávido consumidor morto-vivo em busca da promoção dos sentidos. inerte e vazio o pensamento se converteu numa cólera de julgamentos, onde imperadores de si mesmos proclamam, assim como eu, razão e certeza. será isso moral? será ético? será?

aquilo que não tem nome nem forma, fabrica a moldagem para a posterior modelagem dos corpos, aos que interessam e quanto se interessam, depende de seu valor momentâneo, tua produção serve aos interesses, dos ímpios e escusos aos puros e bem aventurados, mas o corpo precisa de bandagem, aparência, formatação.

de tempos em tempos há crises de padrões, estéticas ambulantes não permitidas autorizam metamorfoses controladas, medidas, mediadas. tantas outras formas parecem aparecer, mas neutralizadas fenecem no horizonte de mais uma era perecível e não reciclável. fica a luta, pouco de luto, litros de sangue, suor e lagrimas. nenhuma mudança se dá fluídica, borboletas sempre se convulsionam para se libertar do casulo.

parece coisa, mas é só ser. o saber da vontade não aniquila as inquietações, não se pode redelinear o jarro depois de assado. intransigência crua, desejos à deriva e urros gigantescos que clamam à inteligência que controle esse corpo que insiste em se triturar todo, até o pó, berro de barro, para quem sabe assim, se reformular e nunca mais se cozer em formas.

Cocoon Jar, 2017. Bouke de Vries
*fauno guazina é produtor cultural, designer e professor universitário.

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